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Yoga

Praticar é Preciso

Praticar é Preciso 1600 1066 Kaka

Praticar é preciso.. Uma jornada de auto conhecimento.
Talvez ninguém saiba muito bem como começou essa jornada. Um comentário entusiasmado de um amigo, uma fotografia bonita de um asana, um conselho de um médico, uma dor insistente. Mas são tantas as informações que nos chegam cada dia, porque demos atenção logo a essas?  Que força foi essa que nos chamou?  A verdade é que esses foram apenas pretextos para iniciarmos a maior viagem que alguma vez poderíamos ter imaginado e que já esperava por nós: a única que se faz de fora para dentro, que não requer mais do que força de vontade e o compromisso de um sadhana. Essa prática que começou com algumas horas de asanas e acabou se estendendo pelo resto do dia, abrangendo todas as áreas da nossa vida. Vamos descobrindo ilhas paradisíacas dentro de nós mesmos, abrindo canais que nos levam ao outro lado do nosso mundo interior, cruzando fronteiras, que depois de passadas, vemos que eram imaginárias.

Por isso, como dizia Fernando Pessoa, “Navegar é preciso, viver não é preciso”. Se esperamos o tempo certo e o mar calmo para sair em nossa viagem, pode ser que fiquemos mais tempo em terra, do que nos aventurando pelos confins do nosso ser. Não podemos querer praticar somente quando temos disposição para isso, nossa mente está clara ou nosso corpo está leve e solto. Os maiores avanços a nível de caminho evolutivo se dão muitas vezes quando encontramos desafios. Nesses momentos de maior vulnerabilidade, precisamos trazer mais consciência e amor, seja para uma lesão, seja para uma emoção negativa que toma conta de nós ou seja pelo que for. Talvez essas condições inóspitas sejam lições necessárias. O mar é o que é e seria muita prepotência querermos ter controle sobre suas condições, nos frustrando quando se avizinha tempo ruim ou quando o vento sopra em direção contrária à que seria ideal para nós. No meio das dificuldades, não nos resta mais do que aprendermos a ser humildes, praticando a aceitação do que é como é e não como nossa visão limitada gostaria que fosse.  Por isso o método é preciso, no sentido em que é essa precisão que nos dá a estrutura para irmos mais longe, mesmo quando o vento não sopra a favor. A sabedoria inerente da sequência de asanas de cada série, a disciplina de praticar todos os dias, o foco constante em algo tão simples e básico como a respiração: essas são as bases que nos permitem ir passo a passo, dia por dia, nos observando, transformando e aceitando.

45Por isso, são tão importantes Bandhas, Dhristi e a respiração Ujjayi, nossos instrumentos de navegação, nossas bussolas e quadrantes, que devemos ter sempre á mão e que nos permitem ir pelo desconhecido com segurança.  Nosso corpo é nossa embarcação, que precisa estar limpa e forte para navegarmos. A mente nosso leme, que nos encaminha nas diferentes direções. Livros como os Yoga Sutras são mapas, dando pistas por onde devemos ir. E mestres como Guruji, nossas estrelas polares, brilhando sempre no céu e nos guiando, mesmo quando perdemos o norte na noite escura da alma.

Mas há algo que ás vezes parecemos nos esquecer e que é uma das coisas mais importantes. Para termos um rumo, temos que saber para onde ir. Podemos contemplar o oceano, aproveitar cada ilha, mas precisamos saber qual nosso destino.  Se dirigimos o barco para leste como podemos querer ir para norte? Se dirigimos nossas ações pensando no conforto dos padrões habituais ou em satisfazer o ego, como podemos chegar um dia a evoluir enquanto seres humanos? Se praticamos pensando no asana perfeito, forçando nosso corpo a chegar lá, seja como for, como podemos criar abertura e relaxamento? Se na nossa prática, mente e Prana são direcionados para os problemas do dia-a-dia, como podemos chegar a ter paz? É totalmente contraditório e seria absurdo, se não fosse tão comum.  Devemos ter clara nossa intenção, não esquecer dela, nem nas piores tormentas, nem na ilha mais paradisíaca. Porque para onde nos direcionamos, é para lá que vamos, mesmo que seja com a velocidade mais lenta do que desejaríamos. Sankalpa é o nome em sânscrito para essa intenção e precisamos defini-lo, tê-lo em mente, para podermos saber qual é nossa prioridade. Porque em qualquer ação que fazemos, até mesmo quando escolhemos não agir, existe uma intenção. Talvez pareça fútil, como ficar em forma, mas pode ter um sentido de base mais profundo quando nos questionamos sobre ela. Ficar em forma pode significar ter mais disposição, ser capaz de fazer mais coisas, se valorizar mais, estar em paz consigo mesmo. O próprio questionamento de nosso sankalpa já é uma prática em si mesmo, porque nos permite nos conhecermos melhor. Então, podemos pegar nesse sentido mais profundo e usá-lo como objetivo, deixando-o claro, para não nos perdermos pelo caminho.

Mas mesmo o navegador mais experiente, com o melhor dos barcos, os melhores instrumentos e destino certo, precisa lidar com os ventos que o desviam do caminho. Que ventos são esses? Poderíamos dizer que os klesas, as cinco aflições ou causas de sofrimento apontadas por Patanjali nos Yoga Sutras: Avidya (ignorância), Ragas (apego ao prazer), Dvesas (aversão ao sofrimento) e Abhinivesa (medo da morte).

09É dito que Avidya é a raiz de todo o sofrimento. Mas essa não é uma ignorância por falta de conhecimento intelectual ou racional. O ser mais simples pode ter Vidya, o conhecimento verdadeiro da sua essência mais profunda, assim como o acadêmico com mais graduações acumuladas pode viver na ignorância, Avidya, de quem é realmente. Porque esse é um conhecimento que não vem só do estudo, trabalho e lógica, mas também da capacidade de se entregar, sentir e amar. Ao longo da vida, tentamos construir nossa identidade e nesse processo vamos edificando uma estrutura ilusória de identidade que nos separa do Todo. Esse é o segundo klesa, Asmita, ou individualidade, e não admira que nos leve na direção contrária do nosso ser mais profundo. Da confusão de Avidya, surge essa tentativa de definição, que inevitavelmente causa uma separação do resto, dando espaço a emoções e ações egoísticas. Se eu vejo o outro como um outro eu, porque vou querer passar por cima da vontade dele, mentir, roubar, manipular? Porque as aspirações e bem estar do outro são menos importantes que as minhas? Avidya, essa ignorância da própria natureza, é desoladora. Responder á pergunta “quem sou Eu?” parece uma tarefa interminável e infinitamente trabalhosa, talvez até impossível. Não por acaso, essa parece ser a busca de base de artistas, filósofos, religiosos. E se a resposta for “eu não sou nada”? É mais fácil se apegar a algo, seja o que for, criar uma ideia de superioridade. Mas o que acontece quando estamos em cima e os outros em baixo é que o pico é solitário. Ninguém mais chegou lá, porque é um alto que nós mesmos criamos, a partir de uma visão que é só nossa. Como pode então esse vento da individualidade e separação nos levar ao centro de nós mesmos, onde reside a Unidade?

_mg_7487De Avidya surgem ainda os dois ventos de Ragas e Dvesas, apegos e aversões. Pois é, nós até sabemos que praticar é preciso. Mas o que fazer com esse apego a zona de conforto, aos prazeres? O que fazer com a aversão à disciplina, ao desconforto causado por certas posturas, a enfrentarmos nossos medos e bloqueios no tapetinho? Não são esses os ventos que nos levam facilmente para outro lugar qualquer que não seja o sadhana diário? Tal como a individualidade, nossos gostos e aversões fazem parte de nós e nada têm de errado, se não nos desviarem do caminho. O problema é quando se tornam tão fortes que perdemos o controle, nos embolamos nas suas ondas tumultuadas e agimos automaticamente, ás vezes até desconsiderando nossos valores. Damos por nós indo exatamente na direção contrária daquilo que tínhamos estipulado como nosso destino, quando tudo estava calmo e tínhamos alguma paz para decidir. Aí, Asmita, Ragas e Dvesas causam sofrimento.

Dando um exemplo simples, nos propomos a praticar todos os dias. Vem o vento do apego à preguiça, da aversão ao esforço. Logo, nossa mente nos convence que bem melhor que ir praticar e ter que lidar com todos aqueles bloqueios e padrões, é ficar em casa, descansando. E cedemos.  Ou estamos numa postura difícil, sabemos que a respiração deve ser nossa prioridade. Mas surge a tensão, o apego ao perfeccionismo, o ego reclamando a supremacia de Asmita. E entramos em modo automático. Contraímos, tensionamos, nos fechamos e bloqueamos o fluxo do Prana. Como pode mudar assim de repente algo que tínhamos tão claro? Para lidarmos com essas duas faces da mesma moeda, precisamos que nosso sadhana seja composto por duas forças, também complementares: Abhyasa e Vairagya. Prática e desapego. É aprender a avançar mas também a realmente deixar o que fica para trás. A agir mas também a permitir. Transformar mas também aceitar.É trabalhar com afinco, incorporando novas formas, novos hábitos á nossa vida, mas também abandonar aquilo que não nos serve mais. Se simplesmente vamos adicionando novidades, logo teremos uma bagagem maior do que podemos carregar. É se abrir ao novo, mas limpando primeiro o espaço para o receber.  É saber que estamos fazendo tudo o que poderíamos para chegar onde queremos, sendo coerentes com nosso sankalpa, mas desapegando do resultado, confiando que as leis do Universo são mais certas do que a nossa própria razão. E relaxar na noção de que, em ultima instância, realmente não temos controle sobre nada. Por que agir então, se não esperamos o resultado? Porque essa ação, mais que tudo, é guiada pelo Dharma e não pelo sucesso individual. Talvez seja nosso Dharma enquanto seres humanos ir de encontro à liberação. Se não fosse nosso ego demandando tanta atenção, se não fosse a mente criando tantas distrações, se pudéssemos apenas relaxar… Não iríamos naturalmente de encontro ao Todo , tal como o rio corre para o mar?

02O que nos leva ao quinto klesa, Abhinivesa, o medo da morte. O que é a morte? O fim da nossa individualidade e provavelmente, a representação máxima do desconhecido e do incontrolável. É o pulo final no abismo, é quanto mais nos agarramos à rocha que um dia inevitavelmente desabará, mais sofrimento criamos. Talvez a relutância em nos entregarmos ao Savasana seja um resquício desse medo, porque nessa aparente não-ação, a individualidade se dissolve. Quantas coisas, quantos avanços o medo bloqueia? O que temos tanto medo de perder? Porque nos precisamos agarrar desesperadamente ao conhecido, ao material? Por isso também o poeta diz que viver não é preciso. Porque no medo de perder a individualidade, de nos desfazermos de gostos e aversões que achávamos que nos definiam, de sairmos da falsa segurança de que somos esse corpo e essa mente, perdemos nosso rumo e às vezes paramos até nossa viagem, estagnando no pântano do medo. Quando conseguimos olhar de frente para esse medo, podemos por fim lidar com ele. Talvez continue lá, mas não nos controlará mais.

Então, não se trata de traçar viagens loucas, de desbravar para conquistar terreno ou se frustrar por não o conseguir. Definimos nosso destino, preparamos nossa embarcação, lemos os mapas, nos apropriamos com os melhores instrumentos, obervamos os ventos que nos podem desviar. Assim preparados, soltamos por fim as âncoras pesadas que nos prendem ao passado e empreendemos com amor e consciência aquela que é a viagem mais importante de nossas vidas. Navegar é preciso.

Texto de Olga Rodrigues

Fotos de Kike Krueger no Intensivo com Kathy Cooper, Setembro, 2014

A Mente e o Yoga

A Mente e o Yoga 150 150 Kaka
Muitos de nós chegamos à nossa primeira aula de Yoga pensando na imagem típica do Yogi sentado tranquilamente meditando, com um leve e plácido sorriso no rosto. A representação perfeita da definição de Yoga contida nos Yoga Sutras: citta vrtti nirodhah, uma mente sem flutuações.  Mas logo nos deparamos com outra realidade: aquele monte de gente se torcendo em posições estranhas do nosso lado, nosso corpo reclamando de desconforto, o professor que diz para respirarmos e a dificuldade em fazê-lo. Quando finalmente sentamos, descobrimos que esvaziar a mente parece impossível. Os problemas do trabalho, as coisas para fazer em casa, as contas, os filhos, o que fazer no almoço.  Os pensamentos voando, num fluxo tumultuado, sem controle. Então, a tal da mente sem flutuações parece apenas uma piada. Á medida que o Yoga toma conta de nossa vida, que nos dedicamos mais e mais, que a disciplina se torna natural e nosso corpo se vai desintoxicando, também nossa mente parece ficar mais leve e clara. Damos por nós reagindo melhor às situações do cotidiano, lidando mais facilmente com nossas emoções. Mas será que realmente o Yoga de cada dia nos ajuda a chegar a citta vrtti nirodhah? Como nossa prática influencia a mente?
Antes de qualquer coisa, precisamos entender esse conceito de mente, que pode ser dividido em três componentes: Manas, Ahamkara e Buddhi. Se pensarmos nos três como camadas, Manas seria a mais orgânica e mais próxima do corpo físico. Recebe as impressões trazidas pelos órgãos dos sentidos, analisando, classificando e identificando objetos. É Manas que coloca várias opções e dúvidas entre elas, sustentando o diálogo interno que parece não ter fim dentro das nossas cabeças. Isso em si não seria um problema, se conseguíssemos não nos identificar com esse fluxo de pensamentos. Aí entra Ahamkara, o Ego, a individualidade. É ele que inicia a identificação com os pensamentos sustentados por Manas, se apegando aquilo que causa prazer, classificando como o que gosto (raga) e rejeitando aquilo que causa sofrimento ou desconforto, classificando como aversão (dvesa). Isso é crucial para construirmos nossa personalidade única, que é afinal o conjunto de todos esses gostos e aversões, interesses e particularidades. A diversidade é importante e enriquecedora, afinal, é muitas vezes nos encontros com pessoas diferentes de nós mesmos que evoluímos e crescemos. Se fossemos desprovidos de Ego e individualidade, esse enriquecimento mútuo não seria possível. 
Para além disso, o grande paradoxo de Ahamkara é que, apesar de nos dar a falsa ilusão de que somos seres separados do resto, é o que nos faz ir em busca do conhecimento e da Unidade. Se o Ego não está presente ou é fraco demais, que razão temos para nos alimentar, para tomar água, para nos cuidarmos? É ele que diz “eu quero me sentir melhor”, “quero saber mais sobre esse tal de Yoga”, “isso vai me fazer bem” ou “isso vai me fazer mal”. O problema é que ele e Manas se apegam ao que já está estabelecido como prazeroso e confortável, rejeitando o desconhecido, segundo os samskaras adquiridos durante todas nossas vidas. Estes são impressões guardadas no nosso corpo mental, que nos condicionam a tomar sempre os mesmos caminhos, a agir automaticamente por padrões repetidos continuamente. Vejamos um exemplo simples: imaginemos que durante nossa infância criamos o samskara de aversão á couve e construímos a identificação de “eu sou uma pessoa que não gosta de couve”, não comendo nunca esse vegetal. Mas, em adultos, na nossa busca por uma alimentação mais natural, nos propomos a provar um prato com couve e descobrimos que afinal gostamos. Nesse momento, quebramos o padrão de rejeição da couve. Se apenas seguíssemos nosso condicionamento, ou seja, se apenas escutássemos Manas e Ahamkara, isso nunca aconteceria. 
O mesmo pode acontecer com nossa prática. O samskara da cama quente pode pesar mais ao inicio na hora de levantar. Manas se revolta imediatamente com a ideia de ter que sair da preguiça mental de não ter que focar em nada, Ahamkara traz as identificações com o prazer da cama, com o hábito adquirido durante anos de se levantar tarde.  Mas depois de algumas vezes fazendo o esforço de levantar, Manas descobre que afinal praticar não só traz tranquilidade como nos faz sentir melhor durante o resto do dia. Logo Ahamkara se identifica com isso e o samskara do beneficio da prática começa a pesar mais. Mas para conseguirmos chegar até aí, precisamos que Buddhi assuma o comando. Esta é a parte mais superior da mente e mais em contato com o divino, é o intelecto, a capacidade de discernimento, que, quando forte, nos leva a escolher pelo que é melhor para nós e para os outros. Se Manas é quem duvida entre a opção da cama quente ou ir praticar e Ahamkara se identifica com a preguiça ou a disciplina, Buddhi é quem opta por sair.
 Ou seja, em si, realmente Manas e Ahamkara, ragas e dvesas, assim como samskaras, não têm nada de errado e são necessários. Já que não conseguimos eliminar de uma vez por todas as identificações, podemos começar por nos identificarmos com coisas que eventualmente nos façam bem, para talvez um dia conseguirmos desapegar delas. Afinal, até para chegar a Samadhi é preciso que um dia esse desejo nasça em Manas e seja tornado nosso por Ahamkara. No fundo, estas duas partes da mente são como crianças que querem sempre ser distraídas e agradadas. Por isso, se torna tão importante uma prática diária, em que consigamos observar seus padrões e condicionamentos. Como podemos educar uma criança para quem olhamos realmente apenas uma vez por semana ou uma vez por mês? 
Quando acontece de sabermos que algo não é bom para nós (seja uma comida, um hábito ou mesmo uma relação) e mesmo assim Ahamkara e Manas, as duas crianças teimosas insistem e conseguem ir pelo mesmo caminho de sempre, “contra nossa vontade”, é sinal que Buddhi está fraco. Se pensarmos na mente como um lago, Buddhi é a superfície que reflete o céu, ou seja, o Absoluto. Por isso, Buddhi traz consigo a sabedoria do Universo e suas leis, ajudando-nos a agir de acordo com elas, ou seja, pelo Dharma. Mas isso nem sempre acontece, porque o lago está tão mexido que não pode refletir nada, cheio de flutuações criadas por Manas e Ahamkara. Conhecendo a mente e seus padrões, podemos começar a diminuir esses altos e baixos. 
Ao mesmo tempo, ao realizarmos práticas como Yamas, Niyamas, Asanas e Pranayamas, muitas vezes sem sabermos, estamos ainda limpando a água desse lago, tornando-a menos densa e turva, ao aumentar Sattva e diminuir Rajas e Tamas. Estes três forças da natureza, chamadas Gunas,  influenciam diretamente o estado da nossa mente.  
Tamas é a mais densa das três, traz consigo a inércia, a escuridão e a ignorância. Quando ela prevalece sobre a mente, fica obscura, embotada e pesada.  Como consequência, as ações são feitas na maior ignorância, sem entendimento da lei de causa-efeito, sem considerar o que é mais adequado ou correto, tendo muitas vezes um caráter auto destrutivo. Nesse estado, a mente está tão densa que precisa de estímulos muito fortes, como música agressiva e  filmes violentos, com ênfase em temas como morte e destruição. A pessoa fica apática, estagnada e apegada emocionalmente, não conseguindo cuidar de si mesma ou mudar o que está errado, ainda que se queixe muito. Todas as drogas, mesmo as estimulantes, aumentam Tamas, assim como o consumo de certos alimentos como: carne, peixe, comida processada ou comer em excesso.
Rajas é a energia da mudança e do movimento, que dá o impulso para sair de Tamas e um pouco mais leve que esta. Ainda assim, as ações são motivadas somente por razões egoísticas e por isso mesmo, quando esta energia prevalece, as pessoas têm muita determinação, mas são impacientes, agitadas e extremamente competitivas. Os alimentos considerados rajásicos são alho, cebola, pimenta, café, chá, comida muito salgada ou muito quente. No entanto, isso não quer dizer que tenhamos que evitar completamente esses alimentos, já que são eficientes para balançar Tamas.
Sattva é a energia harmonizante, que traz luz, energia e amor. Quando Sattva prevalece, tendemos naturalmente ao equilíbrio e a paz, expressando qualidades como generosidade, honestidade e gentileza. O sabor doce, frutas, vegetais, grãos, sementes, lácteos e mel, quando frescos e preparados com amor e consciência, aumentam essa energia em nós.  Todas as práticas, como Pranayama, Asana e mantras, quando feitos com a atitude adequada, ou seja, fundados na base sólida dos Yamas e Niyamas, aumentam Sattva. Assim, não é de estranhar que mesmo sem nos apercebermos ou termos plena consciência disso, ao praticarmos com consciência, honestidade e respeito por nós mesmos e demais, aumentamos essa força dentro de nós e nossa mente fica mais clara. 
Felizmente, tal como podemos cair no ciclo vicioso de Rajas e Tamas, também podemos ascender ao ciclo luminoso de Sattva. Assim, vamos fazendo cada dia nossa prática, diluindo frustrações e expectativas. E Sattva começa a preencher nossas mentes, que passam a brilhar em todo seu potencial, não só nos ajudando a lidar com nós mesmos, mas também com as várias questões da nossa vida. Quanto mais Sattva, mais Buddhi se manifesta e mais Manas e Ahamkara cumprem sua função, sem nos controlar. Isso descomplica nossa vida, torna nossas decisões mais fáceis de tomar e nossas ações melhores para nós e para os outros.  Afinal, toda a ideia de aumentarmos Sattva e controlarmos Manas e Ahamkara não serve apenas o propósito de melhorarmos nossa vida exclusivamente, mas também a forma como nos relacionamos com o mundo.
Mas talvez um dos efeitos mais fortes do Yoga no nosso bem-estar mental venha de nos ensinar a viver plenamente o momento presente.  Asanas, Pranayamas e meditações como Japa, nos obrigam a focar naquilo que estamos fazendo ou perdemos o fio da meada, ao mesmo tempo em que nos dão oportunidade de aprender a receber os pensamentos sem que nos apeguemos. Por isso, no Ashtanga vamos ganhando posturas conforme nos estabelecemos naquelas que já fazemos, o que não significa alcançar a sua perfeição, mas sim conseguir respirar naturalmente, deixando que a energia flua. Estas vão se tornando cada vez mais difíceis, não para nos podermos exibir perante os outros, mas para trazer nossa consciência para o nosso corpo, para a alteração da respiração e nossas reações perante a dificuldade. Isso automaticamente nos puxa para o momento presente. Cada Asana conta assim uma história de superação dos próprios limites e de ganho de conhecimento sobre nosso corpo e mente. Ao sermos, através de todas essas práticas, levados a nos concentrar naquilo que acontece no agora, entendemos até onde vai nosso controle sobre o mesmo. O equilíbrio entre transformar o que está ao nosso alcance transformar e aceitar o que não podemos mudar, nos dá a capacidade de entrega e devoção pelo que É. Talvez essa seja a maior lição que podemos aprender com o Yoga.
Nossa prática realmente pode nos ajudar a ter uma mente mais calma, resistente e equilibrada, talvez um dia chegando a citta vrtii nirodhah. É como se cada dia limpássemos aquele lago, retirando os samskaras que causam flutuações, redemoinhos e correntes, ao mesmo tempo removendo todas as impurezas, para que água cristalina possa refletir aquilo que sempre esteve lá, mas não conseguíamos ver. Assim, relaxando na consciência de que somos também parte desse Absoluto, abandonamos por fim o sentimento de separação e isolamento que gera medos, ansiedades e depressões.
Texto de Olga Rodrigues
Fotos de Taeko

Melhores Momentos

Melhores Momentos 150 150 Kaka
INTENSIVO COM MANJU JOIS

Florianópolis, Abril de 2014
Ashtanga Yoga Floripa
www.samatvayoga.com.br

Filmagem e vídeo Kike Krueger
Trilha Sonora Marcelo Téo

Entrevista Kathy Cooper

Entrevista Kathy Cooper 804 1206 Kaka
Entrevista com Kathy Cooper
Julho, 2014

1. Como você começou a praticar Yoga?

Eu ganhei meu primeiro livro de Yoga da minha mãe e fiquei interessada em começar a praticar. Me mudei para Maui em 1975 e comprei o livro de Richard Hittleman “28 Days Yoga Plan” (“Plano de Yoga de 28 dias”).

Maui é uma ilha pequena, e na época, havia um boato que um casal tinha aparecido com um tipo de Yoga novo. Foi então que conheci David Williams num mercadinho e pedi para ser sua aluna. Ele e Nancy só admitiam alguns alunos, já que eles não tinham um Shala, e por isso, me informaram que poderia começar apenas em novembro de 1976.

Nancy me dava aulas particulares num parque de Lahaina e depois de alguns meses, Forrest construiu um Shala de plástico, com chão de terra batida. Não havia tapetes de Yoga nessa altura e esse foi o começo da minha jornada pelo Yoga.

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2. O que mudou no seu caminho pelo Yoga desde então? Que lição você acredita ter sido a mais importante para você?

Em 3-4 anos em Maui, aprendi todas as séries do Ashtanga, na época chamadas Advanced A e B. A minha vida rodava em torno do Yoga. Hoje, eu pratico seis vezes por semana (quase sempre) e a pratica ainda tem muito a me ensinar diariamente. A maior lição é se entregar ao momento presente. Esse é o lugar em que a transformação, a cura, o despertar e as grandes lições acontecem.

3. Quando você conheceu Guruji? Pode falar um pouco da sua experiência com ele?

Eu o conheci em 1980, em Maui. Ele nos ensinou Advanced A com Full Vinyasa, seguido de meia hora em Sirsasana, por dois meses. Éramos um grupo pequeno e passavamos bastante tempo com ele e Ama. Eles eram amigáveis e interessados em explorar a Ilha. David e eu íamos com Guruji e Ama todos os dias para as aulas. Ele era muito caloroso e acessível e Ama nos dava aulas de culinária. Nossa única e grande limitação estava na língua.

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4. Além da prática de Ashtanga, você estudou também com vários professores de outros métodos e filosofias. Ás vezes, quando temos todas essas influências, é fácil nos distrairmos ou confundirmos. Como conseguiu permanecer focada na sua prática de Ashtanga e como essas influências contribuiriam para a sua jornada?

Ótima pergunta! Durante anos pratiquei sozinha. Por isso, além do Guruji, do David e da Nancy, eu não havia praticado com outros professores. Então, nos anos 90, fiz alguns workshops que a Nancy trazia, como Tim Miller e Richard Freeman. E apenas quando me mudei para a Califórnia foi que entrei na prática estilo Mysore, tal como ela estava sendo ensinada na cidade de Mysore naquela época.

Ainda que eu pratique Ashtanga Yoga, o meu despertar e o meu caminho de cura tem sido facilitados por outros professores espirituais que cruzaram o meu caminho. Sou muito grata por todas essas experiências e por ter conseguido reconhecer a “unidade” em todos eles. O Ashtanga Yoga é um caminho verdadeiro e tem me feito ir mais profundo ao longo dos anos através de todas minhas experiências. Sempre integrei tudo no meu tapetinho.

Eu não vejo Yoga como uma religião, mas sim como um caminho para a verdade universal dentro de cada um de nós.
Este é um assunto extenso e poderia ser desenvolvido numa conversa mais longa.

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5. Qual você acredita ser o segredo para praticarmos pelo resto de nossas vidas?

A minha experiência me diz que permanecer na prática, me movimentando e respirando, permitindo que a energia me abra, (sem forçar de alguma forma) é o que me conecta ao “flow”. Se entregar ao momento presente é o caminho e a benção da prática.

6. Há mais alguma coisa que queira acrescentar?

Á medida que tenho caminhado pela minha vida, curando meu corpo e mente, a prática de Ashtanga tem sido o meu leme. Todos os dias eu me sinto grata por ela. A prática me dá o tom de uma atitude aberta e positiva para receber e experienciar o dia de forma fresca. É uma imensa alegria encontrar pessoas que amam este método, que estão trabalhando para encontrar a paz e a verdade interior, que irradia e abençoa nosso mundo.

Kathy Cooper volta ao Brasil pelo quinto ano consecutivo. Programe-se e participe!!
De 09 à 28 de Outubro de 2016 em Floripa

Uma semana de intensivo completo e mais duas semanas de práticas Mysore com conferência no final de semana.
Inscrições abertas.

Saiba + informações, escreva para:
anaclaudiayoga@gmail.com

Pranayama

Pranayama 150 150 Kaka
PRANAYAMA
Quando nascemos, nossa vida começa com uma inspiração. Deixamos a proteção quente do útero e, pela primeira vez, enchemos nossos pulmões de ar, nosso interior até então intocado, agora em contato direto com o mundo. É nossa primeira afirmação de independência, deixar de precisar do oxigênio materno. Quando deixamos este corpo, é também com uma exalação. Na tradição hindu, se acredita que não é o número de anos por vida que está predestinado, mas sim o número de respirações. 
Isso nos leva ao quarto membro do Ashtanga Yoga: o Pranayama, que significa literalmente expansão da respiração. Assim, prolongando a respiração, prolongamos nossa vida.
Patanjali decorre sobre este Anga em cinco sutras:
2.49. TASMIN SATI SVASA PRASVASAYOH GATIVICCHEDAH PRANAYAMAH. Pranayama é o controle do fluxo respiratório, entrando e saindo junto com retenção. Só deve ser praticado depois de ser alcançada a perfeição no Asana.
2.50. BAHYA ABHYANTARA STAMBHA VRTTIH DESA KALA SAMKHYABHIH PARIDRASTAH DIRGHA SUKSHMA. Pranayama consta de três movimentos: inspiração, exalação e retenção prolongadas e suaves, todos eles regulados com precisão segundo duração e lugar.
2.51. BAHYA ABHYANTARA VISHAYA AKSEPI CARTUTHAH.  O quarto tipo de Pranayama transcende os pranayamas internos e externos, surge fácil e indeliberado.
2.52. TATH KSIYATE PRAKASHA AVARANAM. Pranayama afasta o véu que cobre a luz do conhecimento e anuncia o principio da sabedoria.
2.53. DHARANASU CA YOGYATA MANASAH. A mente fica apta para a concentração.
Porém, Prana é uma palavra bem mais abrangente do que respiração. Prana é a energia vital, o Chi da Medicina Chinesa. Dá-nos entusiasmo, purifica e energiza o corpo, transitando pelos nadis (canais energéticos). Está presente nos alimentos, na água, mas sobretudo no ar e por isso, é importante controlar a respiração.  Geralmente, são chamados de Pranayama os exercícios de respiração que servem exatamente para aprendermos a expandir inspiração, exalação e retenção, dessa forma aumentando e segurando mais Prana no nosso interior. Estes melhoram a circulação para os órgãos e ajudam a remover toxinas. Pela intima relação de Prana com Vata, o equilibram, trabalhando com o sistema nervoso e assim reduzindo depressão, estresse e tensão. Removem o muco causado por  agravo de Kapha. Alguns Pranayamas com propriedades refrescantes ainda acalmam Pitta. Energeticamente, desbloqueiam os nadis e equilibram o fluxo entre Ida e Pingala, os dois canais pelos quais flui a energia solar (quente, masculina) e lunar (fria, feminina). 
Mas Patanjali começa falando de Pranayama com a advertência sobre Asana, a postura. Não devemos subestimar Prana, já que este é essencialmente vibração e um corpo despreparado e muito bloqueado pode não tolerar toda essa energia. Por isso, estes exercícios de respiração devem ser aprendidos diretamente de um professor, que saberá quando o aluno está pronto. Se não conseguimos nem manter a coluna ereta durante mais do que uns minutos, como podemos querer que o Prana flua pelo Sushumna Nadi, o principal canal energético do corpo? 
No Ashtanga Vinyasa Yoga, usamos a respiração Ujjayi, também conhecida como respiração vitoriosa. Profunda, produz um som característico por ação do Jalandhara Bhanda, na parte de trás da garganta. Esquenta o corpo, intensificando a circulação sanguínea, reduz Kapha e Vata, estimula o Agni e aumenta Prana na cabeça e no coração. Ao mesmo tempo, aprendemos a equilibrar Prana (ascendente) com Apana (descendente), criando um forte centro energético onde eles se encontram, na região abdominal, do Udyana Bandha. Os três Bandhas e o equilíbrio Prana-Apana, fazem com que o Prana inalado realmente consiga ser absorvido pelas nossas células, já que fica retido e não se esvai simplesmente. Trabalhando diariamente com esses três pontos e a respiração Ujjayi, construímos uma base sólida para aprendermos outros Pranayamas e ganharmos cada vez mais o controle da respiração. 
Este sutra nos lembra ainda da importância de um corpo saudável para prosseguirmos no caminho do Yoga. Muitas vezes queremos queimar etapas, atingir Samadhi na primeira aula de Yoga, fazer Pranayama sem um corpo e mente fortes. É como querer decorar luxuosamente uma casa caindo aos pedaços.  Não se trata aqui de corpos sarados, mas com Ojas, o fluido que sustenta Prana. Ojas é o néctar que melhora a imunidade, a resistência física e mental, a estabilidade emocional e  a afetividade. Sem o suporte desse fluido vital, Prana pode até perturbar nosso sistema nervoso e mente. Ojas é basicamente aumentado por uma dieta sátvica, como frutas, amêndoas, mel, ghee e leite orgânico, assim como por atos de devoção ou Bhakti Yoga. Sua presença é visível quando a pessoa dificilmente fica doente, é naturalmente generosa e afetuosa, enfrentando a vida com contentamento.
No sutra 2.50, Patanjali diz que os três movimentos (inspiração, exalação e retenção, que seria a transição entre os outros dois) devem ser dirgha e suskhma, prolongados e suaves. Isso é algo que vai além dos exercícios a que chamamos Pranayama e que podemos aplicar tanto ao resto da nossa vida como na prática de Asanas. Porque mente e Prana têm a mesma natureza, sempre vão juntos. Se a nossa mente se agita, como numa situação de medo, a respiração automaticamente fica ofegante. Da mesma forma, se nos queremos acalmar, precisamos respirar mais profundamente. Ou seja, para conseguir citta vrtti nirodhah, uma mente sem flutuações, precisamos que a respiração seja suave e prolongada. Na prática de Asanas, por exemplo, quando queremos muito alcançar uma postura ou quando sentimos um desconforto forte, a nossa reação natural é travar a respiração, o que só causa mais dor e tensão. Conforme vamos conhecendo nosso padrão, que pensamentos, posturas ou movimentos o iniciam, mais facilmente podemos prever quando nossa respiração vai se agitar, focando antes em prolongar e suavizar a respiração. Dessa forma, nossas células recebem mais oxigênio, a mente fica mais clara e os nadis se enchem de Prana, facilitando a prática.  
No sutra 2.51, Patanjali descreve um quarto tipo de movimento da respiração, que surge sem esforço e indeliberadamente. Este somente pode acontecer quando Apana e Prana estão realmente equilibrados e a respiração comum é naturalmente suspensa. Obviamente, chegar a esse estado requer muita preparação. No Japa,  o mantra vai e vem e aos poucos nos damos conta que o silêncio não é o intervalo entre o som, mas algo que já lá está. Também este tipo de respiração sutil está continuamente presente, o que acontece é que somos distraídos pelos movimentos naturais da respiração e não a conseguimos sentir. Por isso, se diz que transcende os outros três. Quando finalmente acalmamos a variação da respiração, nosso Prana se une a um Prana cósmico e universal.
Nos seguintes sutras, é dito que Pranayama descobre o véu da ignorância e prepara a mente para Dharana, a concentração num ponto só. Precisamos conhecer as três flutuações da respiração e ser plenamente consciente delas, tal como acontece com as do corpo e a da mente, para depois podermos transcender-las. Só estabelecidos no Asana sthiram sukham (firme e confortável) e absorvendo plenamente o Prana através de uma respiração dirghah suskhma (suave e prolongada), a mente se pode finalmente acalmar e a verdadeira meditação acontecer. Aí se retira o véu da ignorância, aquela que nos faz crer que somos seres separados de um Todo.  As dualidades do corpo são ultrapassadas e não nos incomodam mais, o Prana interior se dissolve no Prana cósmico e a mente cessa seus altos e baixos, espelhando o Absoluto. 
Mas voltemos à ideia de que nascemos com uma inspiração e morremos com uma exalação, tendo um numero de respirações certas entre esses dois momentos. Como aproveitamos essa dávida é um reflexo de como vivemos. Respiramos conscientemente? Ou escolhemos desperdiçar Prana em sentimentos como a raiva, que nos fazem perder o controle? Para onde levamos nossa mente, o que alimentamos com nossa força vital? Mais do que uma preocupação com se vamos atingir Samadhi ou não, o que uma prática de Yoga nos dá é uma oportunidade de vivermos mais plenamente, de atingirmos e desfrutarmos de todo nosso potencial. O Pranayama nos dá a capacidade de dirigir nossa energia, de expandir nossa vida e entusiasmo através do simples ato de respirar. Retirado o véu da ignorância, podemos por fim absorver a luz da sabedoria.

Texto de Olga Rodrigues 
Fotos de Taeko 
Modelos Maitê e Koa

Agni: o fogo digestivo

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Agni
Se nosso corpo é um templo, no centro dele está a chama do altar para Agni Deva, o Deus do Fogo, que tem o poder de purificar aquilo em que toca.  A força, luz e calor dessa chama dependem das oferendas que fazemos e de quanto nos esforçamos para mantê-la acesa. 
Isso é mais do que uma metáfora: o Agni, nosso fogo digestivo, realmente tem as qualidades de uma fogueira. É quente, aromático, seco, penetrante e leve. Com liquido frio ele se apaga, com alimento em excesso é abafado e se está forte demais termina rápido, reduzindo tudo a cinzas. É a inteligência que seleciona o que vem do mundo, separando o que vale e nos nutre do que deve ser eliminado. Sem ele, não teria como tirar de cada alimento proteínas, hidratos de carbono, gorduras, vitaminas e sais minerais. Falamos aqui do Agni do sistema digestivo, o Jatharagni, mas na verdade existem vários Agnis, em todos tecidos e células. Mesmo a mente precisa de um fogo que digira as impressões que captamos ou ficaríamos tão absorvidos por elas que seria difícil viver. É ele que seleciona aquilo a que devemos prestar atenção, já que são milhares de informações que entram pelos nossos sentidos a cada momento. O mesmo acontece com as emoções: precisamos digeri-las para avançar, se não ficaríamos constantemente presos ao que aconteceu há anos atrás. Agni é transformação.  Por isso é tão importante que esteja equilibrado, só assim cada alimento ou impressão se poderá transformar naquilo que nosso corpo e mente necessitam. Podemos comer a refeição mais saudável de todos os tempos, tudo orgânico e fresco, se passar pelo nosso corpo e não for digerido, de que nos serve?
Mas como saber se nosso fogo está com a chama no ponto certo? Tem vários fatores que o indicam, só precisamos observar como nosso corpo reage à comida ou falta dela. Se o Agni está equilibrado, nos sentiremos energizados e satisfeitos após uma refeição, sem qualquer desconforto. Após 2 horas, estaremos com o estomago vazio, sinal que a refeição foi digerida corretamente. As eliminações serão regulares e bem formadas. Teremos fome de verdade, aquela que vem acompanhada de uma sensação física e não somente vontade de comer.  Esse apetite virá em horários certos: leve de manhã, forte ao meio-dia e médio no final da tarde. O Agni tem toda uma relação com o Sol e por isso mesmo é mais intenso quando este está a pico e mais leve quando este está subindo ou se pondo.  
Um Jatharagni equilibrado tem um efeito geral no corpo. Sem essa primeira digestão feita corretamente, todos os outros tecidos ficariam deficientes. Ao mesmo tempo, dá também uma sensação geral de bem-estar. Quem sofre de constipação ou gastrite constantemente sabe que isso afeta diretamente o humor. Faz sentido, se pensarmos que a região abdominal é exatamente a do chakra do plexo solar, o Manipura Chakra, que governa a autoestima e a força de vontade. Quando a energia pode fluir livremente por esta área, nos sentimos mais confiantes e seguros.
Por outro lado, o corpo chama a nossa atenção para o fato de o Agni não estar funcionando corretamente quando depois de uma refeição nos sentimos enjoados, cansados, com a barriga dilatada, azia ou gases. Ás vezes esses desconfortos se tornam algo tão recorrente que os vemos como naturais, mas se trata apenas de um desequilíbrio constante. A consequência disso é a formação de Ama, o conjunto de toxinas (como o colesterol) acumuladas pela digestão incorreta dos alimentos. Do sistema digestivo, Ama se propaga para outros tecidos e células, sendo uma das principais causas de doença. É o resíduo que fica na chaminé, entupindo a saída do ar.  É o oposto do Agni: frio, denso, pegajoso e de odor fétido. Quando está presente, a língua fica com uma camada espessa esbranquiçada ou amarela, hálito, suor e eliminações com odor forte e desagradável, as fezes afundam no vaso, temos falta de apetite, depressão e fadiga. 
Mas o Agni em desequilíbrio não é sempre igual, tem três padrões: Vishana, Manda e Tikshna. Vishana Agni é aquele fogo variável, soprado por lufadas de vento, acendendo e apagando constantemente, mais comum em pessoas com constituição Vata. O apetite é muito irregular, sendo que ao meio dia pode ser tão pouco que a pessoa se esquece de comer, mas voltando em horários inapropriados, como a meio da noite. Essa irregularidade aumenta Vata, causando gases.  Manda Agni é aquela fogueira feita com lenha úmida, que parece não pegar nunca e que se mantém constantemente baixa. É mais comum em pessoas de constituição Kapha, que costumam ter um apetite leve mas constante, podendo comer a qualquer hora do dia, muitas vezes por questões emocionais ou sociais (afinal, esse Dosha está muito ligado ao afeto). O metabolismo é lento e a digestão se arrasta por demasiado tempo, dando sensação de peso e náuseas. Já Tikshna Agni é aquele fogo que queima tudo e apaga rápido. É mais comum em pessoas de constituição Pitta, que têm um apetite voraz e um metabolismo rápido. Ficam irritadas quando não comem, exageram na quantidade de comida mas têm fome passado uma hora. O problema é que os nutrientes não são devidamente digeridos e surge azia, queimação e gastrite. 
Então, como equilibrar o Agni? Seguem algumas dicas:

  • Como foi dito antes, é importante comer de acordo com o ciclo natural, fazendo a maior refeição do dia entre o meio-dia e as duas horas da tarde. O jantar deve ser leve e antes das oito horas da noite. Se no levantamos todos os dias cansados e sem energia, mesmo tendo dormido horas suficientes, pode ser por jantarmos demasiado ou muito tarde. Em vez de repousar, nosso corpo precisou ficar trabalhando para digerir a última refeição. Um provérbio indiano diz: Coma de manhã como um príncipe, ao almoço como um rei e ao jantar como um monge. 
  • Nosso sistema digestivo precisa de um tempo para digerir o que comemos. Se petiscamos constantemente o levamos á exaustão. Por isso, devemos comer somente quando temos fome. Talvez isso vá contra aquilo que sempre escutou, mas se trata mais de seguir a sabedoria do corpo do que seguir um conjunto de regras fixas. 
  • Não devemos comer quando estamos estressados, agitados ou rodeados de estímulos como a televisão. Quando mais tranquilo estiver nosso entorno e nossa mente, mais Agni Deva se sentirá respeitado e mais se apresentará.
  • Muito liquido junto com a comida, bebidas ou alimentos gelados apagam o Agni e devem ser evitados.
  • Pouca lenha não deixa o fogo acender, muita o abafa. Para saber a quantidade ideal de comida, basta colocar as duas mãos em concha e imaginar uma porção que ali caiba. Parece pouco, mas gradualmente vamos aprendendo a não terminar a refeição somente quando nosso estômago está completamente cheio. Segundo o Ayurveda, devemos preenchê-lo com dois quartos de comida, um de liquido e um de ar. 
  • Quanto mais frescos os alimentos, mais Prana têm. Por isso, sempre que possível, devemos evitar comida processada, guardada na geladeira por muito tempo ou congelada.
  • Comer de acordo com nossa constituição e clima é fundamental para equilibrar o Agni. Para isso, precisamos observar os atributos: se, por exemplo, o tempo está úmido, pesado e frio ou se já temos uma constituição Kapha, devemos evitar alimentos com as mesmas características, como um sorvete ou uma vitamina de banana.
  • As especiarias e ervas aromáticas estimulam o Agni, facilitando a digestão. Alguns exemplos são: gengibre, cominhos, coentros, cardamomo, manjericão, cúrcuma, asa fétida e pimenta negra ou caiena.
  • Quem tem Tikshna Agni, um fogo exacerbado, deve evitar o sabor picante.
  • O gengibre é considerado pelo Ayurveda o “remédio universal”, por suas propriedades e versatilidade. Tomar chá de gengibre antes e depois das refeições ajuda na digestão. Para casos em que o Agni está muito fraco pode ser tomada a seguinte mistura, meia hora antes das refeições: um pedaço de gengibre ralado e espremido, a mesma quantidade de suco de limão, uma pitada de sal e uma colher de chá de açúcar mascavo.

Muitas vezes nos queixamos que não temos tempo para fazer um ritual diário que nos aproxime mais do Absoluto. Mas nos esquecemos de que pelo menos três vezes por dia oferecemos a comida a Agni Deva, mensageiro dos outros deuses. Rendermo-nos a suas leis e deixar de lutar contra relação causa-consequência (se comemos muito tarde, acordamos cansados, por exemplo), é mais uma oportunidade de ganhar humildade perante as leis do Universo. Para além disso, este é um Puja para o qual não precisamos de nada de especial, somente nossa concentração e gratidão por nos podermos alimentar. Ao fazermos da refeição um ato de devoção, entregamo-nos ao divino que está dentro de nós.
Texto de Olga Rodrigues
Imagens do casal Taeko & Tom Spindola

Obstáculos

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Obstáculos 

Quando iniciamos o caminho do Yoga e vemos a diferença que faz no nosso dia-a-dia, nos enchemos de entusiasmo, com vontade de descobrir mais e mais. Nesse primeiro momento, estamos dispostos a fazer sacrifícios e alterações na nossa rotina, tudo pela nova paixão. Mas, com o tempo, surgem alguns obstáculos que nos fazem estancar, retroceder e até abandonar a prática. Quem nunca se viu num momento difícil, em que seria mais fácil esquecer o Yoga?
Os desafios são muitos e surgem em diferentes formas e de diversas fontes. Ás vezes, são questões sobre as quais temos pouco controle, como uma doença. Outras, condições externas que põem a prova nossa determinação, como a chegada do frio. E ás vezes, são artimanhas da mente teimosa que persiste em padrões de auto-sabotagem. Seja como for, o importante é entender que tudo isso faz parte do caminho a que nos propusemos quando nos dedicamos ao Yoga. A prática é apenas um espelho da nossa vida e não será sempre perfeita ou prazerosa. É nos momentos que surgem os obstáculos que temos as maiores oportunidades de transformação e exatamente quando não devemos parar. Se aprendermos a lidar com eles, levaremos essa lição para a vida.
Esses obstáculos são tão antigos e universais que Patanjali já os referia nos Yoga Sutras, tendo mencionado nove: Viadhy (doença), Styana (falta de preserverança), Samshaya (dúvida), Pramada (negligência), Alasya (preguiça), Avirati (gratificação sensorial), Brantidarshan (percepção equivocada), Alabdha-bhumikatva (incapacidade de progredir), Anavasthitatvani (incapacidade de manter o progresso alcançado).
Viadhy, a doença física ou mental, pode ser um impedimento bem forte, nos obrigando a parar. Quando retomamos a prática após uma doença que nos derrubou, devemos começar devagar, respeitando e sentindo os limites do nosso corpo. Também as lesões são reais e não devemos ignorar a dor. Mas uma lesão nem sempre obriga a parar de praticar ou executar determinadas posturas. Na maior parte das vezes, aquelas em que se sente dor podem ser modificadas. Nesse momento, podemos “conversar” com o músculo ou articulação afetada, perguntando onde dói e parando antes desse ponto. Não só é um excelente exercício de aceitação como nos leva a ganhar consciência corporal.  Ao mesmo tempo, ao não pararmos de trabalhar com a parte lesionada, aumentamos a circulação de sangue e linfa para a mesma e por consequência, o aporte de oxigênio e nutrientes, o que facilitará a recuperação. Se simplesmente pararmos de mexer aquela parte do corpo, esta receberá a mensagem de que deve ficar quieta e assim o fará. Também é importante entender a diferença entre a dor de uma lesão e a dor causada por um bloqueio, em que o corpo transmite um acúmulo de emoções estagnadas. Essas são talvez as que mais nos dão vontade de desistir, porque trazem consigo anos de medo, frustrações, raivas ou mágoas. No entanto, não é exatamente necessário entender as emoções que são a raiz da dor, até porque isso pode levar a uma racionalização excessiva do processo de liberação, interrompendo-o. Trabalhando com amor e com a respiração, esses bloqueios começarão a se desfazer.
Outro obstáculo de ordem física é Alasya, a preguiça, com que até a pessoa mais cheia de energia lida de vez em quando. É o conforto da cama que nos chama na madrugada, a vontade de ficar no sofá. É algo natural, inerente ao ser humano. O problema é quando nos impede de fazer o que sabemos que nos faz bem. É normalmente fruto de Tamas, a energia da escuridão e da inércia, que podemos estar alimentando, sem saber, através de dieta e estilo de vida. Comidas tamásicas, que embotam mente e corpo como carne vermelha, álcool e drogas, sejam elas estimulantes ou sedativas, um estilo de vida demasiado sedentário, com foco no prazer, hábitos noctívagos e até mesmo o tipo de arte que cultiva a escuridão, só vão aumentar essa energia dentro de nós, criando confusão, resistência à mudança e apatia.
Tamas pode estar também na origem de outro obstáculo, Styana, a preguiça mental. É essa tendência a procrastinação, a dificuldade de persistir, esse “ah, deixa para lá…” que tantas vezes toma conta de nós. Sabemos por experiência, que ir praticar nos fará sentir bem, mas adiamos. É uma estratégia do ego para não ter que modificar os padrões aos quais está acostumado, assim como da mente, que não quer ser controlada. Aí entra Tapas, o fogo da autodisciplina, tanto para a preguiça física como mental. É ele que nos faz sair da zona de conforto, que nos dá o impulso para sairmos da letargia. Uma boa estratégia para enganar mente e corpos preguiçosos é se propor a fazer algo, nem que seja pouco. Por exemplo, cinco Surya Namaskar e cinco B, ou cantar um mantra curto. O mais provável é que depois do motor colocado em marcha se torne mais fácil continuar.
Assim como Styana, Samshaya, a dúvida, é uma artimanha do ego e da mente para nos distrair do nosso objetivo. Não é que essas duas partes da consciência sejam malvadas, mas são como crianças mimadas, que focam no imediato e agradável. Não têm paciência para ficar alterando a estrutura existente, mesmo que ela resulte em frustrações, ou para ficar focando numa coisa só como a respiração, durante 2 horas seguidas. Querem distração, diversão, resultados rápidos. Quando isso não acontece, surge a ideia de que existe algum problema. Como sempre, tendemos a achar que existe algo de errado quando as coisas não correm como queremos. Podemos achar que o problema é nosso, focando nas dores que sentimos ou na própria anatomia. É o músculo encurtado, o joelho que sempre dói, o ombro fechado, tudo identificações erradas, que geram dúvida: para quê praticar, se nunca vou ultrapassar isso? Surge também a comparação com os outros: com o que evolui mais rápido, com o que tem o corpo mais aberto ou forte, com o que tem mais disciplina, o que for. A verdade é que o ego não resiste à comparação, porque é uma ótima desculpa para não ter que evoluir. Ou colocamos o problema no exterior: será que o Yoga é para mim? Será que há algo melhor? E se eu tentasse outra aula? Outro professor? Enquanto vamos pulando de aula em aula, método em método ou até de atividade em atividade, não temos que lidar com o que nos assusta.  O novo deslumbra, toma nossa atenção e nossas frustrações ficam latentes, mas caladas. Não se trata de abandonar o questionamento, que é fundamental, mas de persistir em algo o tempo necessário para que realmente possamos sentir seu benefício. A dúvida é algo tão constante na nossa vida, que se desistirmos de algo sempre que duvidamos, apenas teremos instabilidade e gastaremos mais energia a mudar a forma do que a nos aprofundarmos no conteúdo. A dúvida se acalma quando pensamos com o coração e seguimos aquilo que nos faz realmente bem.

Agora você pode estar pensando: dormir até tarde me faz bem, comer batata frita me faz bem, beber álcool me faz bem. Afinal, eu me divirto fazendo tudo isso. Primeiro, precisamos distinguir o que nos faz bem do que nos faz sentir bem. Por isso Avirati, gratificação sensorial ou falta de moderação, é um obstáculo: porque nos confunde, nos faz ir somente em busca do prazer. Este não é danoso por si, o problema é o apego que temos por ele. Até o apego a uma prática prazerosa pode ser prejudicial, se formos cada dia com essa expectativa e nos frustramos quando não é correspondida. Nenhum problema em gostar de sorvete de chocolate, mas e se desesperarmos quando não podemos comer? Ou se não conseguirmos comer outra coisa? Ou se comermos mesmo de cama com uma gripe forte e neve lá fora, sabendo que a nossa garganta vai doer depois? Talvez todo esse nosso amor por sorvete de chocolate esteja começando a nos fazer mais mal que bem. É aí que se faz necessária a observação de como reagimos quando não temos o prazer, do quanto estamos dispostos a abdicar para ter esse prazer, o que representa para nós. Porque muitas vezes, mais do que somente a gratificação imediata do desejo atendido, existe algo por trás, algo mais profundo. Tanto pode ser uma emoção com que não conseguimos lidar, em que se come o sorvete por ansiedade, como uma identificação errônea com determinados papeis que assumimos ao longe da vida e dos quais não nos conseguimos soltar. O boêmio, o bom gourmand, o preguiçoso que dorme até tarde, a máquina sexual… Tudo rótulos que nos prendem, mas que ao mesmo tempo nos dão segurança de sabermos quem somos. Sem eles, resta todo um vazio. Afinal, no vazio reside todo o potencial do Universo. Então, a proposta aqui não é ficar na austeridade ou abdicar do prazer, mas entender que esse é momentâneo, o quanto ele nos traz e se vale sacrificarmos algo que em longo prazo nos trará mais benefícios e mais bem-estar. 

Pramada é a negligência, a falta de cuidado. Se praticarmos sem atenção, não só não evoluiremos como ainda podemos causar danos. Colocar nossa atenção no que fazemos é a base para uma vida mais consciente. A prática nos ensina isso, mas também podemos praticar sem atenção. Seja lavando os pratos, seja fazendo asanas ou meditando, se não tivermos cuidado com o que estamos fazendo, o resultado será sempre o mesmo: a vida passa por nós como um filme, em que nos remetemos ao lugar de espectador, sem muita participação no que acontece. No entanto, como em tudo, o equilíbrio está no meio. Abordamos a prática com respeito e devoção, mas não precisamos ficar obcecados quanto a seus detalhes. A excessiva preocupação com questões como o alinhamento, enche nossa mente de questões, nos tira do momento e em última instância, é apenas mais uma distração como as outras.
Os últimos três obstáculos são muito comuns depois de um tempo praticando e talvez em si mesmos, constituam fases do processo de evolução no Yoga. O primeiro é Brantidarshan, a visão errônea e prematura que já sabemos do que se trata o Yoga. No momento em que julgamos saber tudo é exatamente quando estamos mais longe da verdade, quando perdemos toda a humildade. Aí surge o julgamento, a visão fechada de que há só um jeito de fazer as coisas (o nosso, claro), a arrogância e a inflexibilidade. E porque o resto do mundo não se vai render a nossa supremacia iluminada, existe o perigo de nos julgarmos incompreendidos, nos isolarmos e nos afastarmos da prática. 
O segundo é Alabdhabhumitatva, a incapacidade de avançar. Acontece muitas vezes que um praticante evolui rapidamente e logo esse processo abranda ou para. É o famoso plateâu, e pode ser desesperador, se não lidarmos com ele com paciência. Persistindo, mesmo com passos de tartaruga, guiados pelo Dharma, reafirmamos nosso caminho cada dia. O avanço pode ser imperceptível, mas continua acontecendo. E não se trata aqui somente de evolução nas posturas, mas também enquanto pessoas. 
O terceiro é Anavasthitatvam, que é a incapacidade de manter o progresso alcançado, que pode acontecer por instabilidade. De novo, a dúvida, a inconstância, a necessidade de alterar a forma, nos fazem perder o fio condutor. Se não mantemos uma constância na prática e aparecemos só de vez em quando, estaremos continuamente reiniciando um processo. É como uma escada que temos que subir, mas em que estamos constantemente voltando para o primeiro lance de degraus.
Dos nove obstáculos primários, vêm quatro secundários: Dukha (sofrimento), Daurmanasya (frustração), Angamejayatva (tremores) e Svasaprashvasa (respiração irregular). Podemos facilmente visualizar como todos os obstáculos se complementam e sucedem, se não tivermos a força para lidar com eles. Num exemplo aleatório, da preguiça vem a dúvida, que nos faz respirar irregularmente, causando dor, que nos leva a frustração, que faz com que não consigamos avançar, que nos leva a negligenciar nossa prática, o que causa uma lesão, que leva a inércia. Esse é só um dos cenários possíveis. Cabe-nos romper esses ciclos, entender que todos esses desafios fazem parte do caminho que escolhemos. Patanjali segue por vários sutras, descrevendo formas de ultrapassar esses obstáculos, mas qual a primeira? Concentrar-se numa coisa só. Por isso, escolha uma prática e persista nela. Diferentes métodos, diferentes aulas, fazer um Japa ou uma sequencia de Asanas, tudo são ramos de uma mesma árvore, com os mesmos frutos por colher. 

Um conto antigo narra a história de um homem que se perdeu no deserto. Estava morrendo de sede, quando passou uma caravana da qual saiu um grupo de pessoas, que logo veio ao seu encontro. Ele murmurou: “Água, água, por favor”. Mas as pessoas perguntaram: Queria diretamente do copo ou era melhor do cantil? Ou seria melhor uma xícara? Poderia ser de cristal ou era melhor de prata? Um cálice seria suficiente? Enquanto o grupo se debatia com estas questões, travando uma discussão acesa sobre como seria preferível servir a água, o homem deu o último suspiro, morrendo de sede. Esta história ilustra a facilidade com que nos prendemos a coisas banais e nos distraímos com questões insignificantes. Enquanto nos debatemos com detalhes, ignoramos o essencial: a nossa sede de liberação, o que afinal nos trouxe até ao Yoga.  E isso não é algo exclusivo a algumas pessoas, todos nós, em diferentes momentos, passamos por isso.

Então, esse texto é para quem está passando por um momento difícil e não consegue praticar sem que o pensamento voe. Para quem está pensando em desistir porque perdeu o entusiasmo inicial. Para quem não está conseguindo acordar no frio do Inverno. Para quem parou por uma questão importante como um problema de saúde e está se deparando com a dificuldade de recomeçar. Para quem se sente atraído pelo Yoga mas se acha muito duro para isso. Para quem pratica todos os dias e se culpa pelas vezes que não tem vontade de ir. Para quem está tendo dificuldade de conciliar uma vida social agitada com os horários de prática.  Para quem sente que não avança, por mais que pratique. Para quem pratica com o tempo contado, porque tem que levar o filho na escola ou ir para o trabalho e se questiona se vale a pena. Para quem começou agora e está sentindo que finalmente está no caminho certo, apaixonado pela descoberta. É para todos nós. Porque os obstáculos são inevitáveis e vão aparecer no Yoga, mas também na nossa vida, muitas mais vezes do que gostaríamos. Até o praticante mais avançado os encontrará. O que podemos transformar é a forma como lidamos com eles, alimentar essa capacidade de nos superarmos a cada momento, de irmos mais longe do que alguma vez pensamos. E lembrarmos que a pedra no caminho terá sempre o tamanho exato do passo que estivermos prontos para dar. 

Texto de Olga Rodrigues 
Fotos de Taeko

Asana

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Ashtanga Yoga: Asana
Quando no mundo ocidental se fala de Yoga, a maior parte das vezes, se fala de uma prática de Asanas. As diferentes posturas, que tantos nos atraem por transparecerem ao mesmo tempo força e delicadeza, são muitas vezes a porta de entrada para o mundo que é o Yoga.  Mas nos Yoga Sutras, Patanjali refere-as como o terceiro dos oito angas, depois de Yamas e Niyamas. E o que é talvez mais surpreendente para quem sempre viu Yoga como um monte de posturas seguidas de uns minutos de meditação, é que em 196 sutras, apenas três são dedicados aos Asanas. Não por isso, deixa de ser uma peça fundamental do Yoga e mesmo em poucas palavras, Patanjali consegue colocar muita sabedoria sobre o tema.
 Os três sutras são:
2.46. STHIRA SUKHAM ASANAM. Asana é uma postura estável e confortável.
2.47. PRAYATNA SAITHILYANANTA SAMAPATTIBHYAM. Alcança-se a perfeição do asana quando o esforço por realizá-lo se torna não-esforço e se alcança o ser infinito interior.
2.48. TATO DVANDVANANABHIGATAH. Consequente, o praticante jamais é perturbado pelas dualidades.
Um dos objetivos de permanecermos em uma postura estável e confortável é facilitar os próximos estágios do Yoga, como Pranayama, Pratyahara (recolhimento dos sentidos), Dharana (concentração) e Dhyana (meditação). Fácil, não? Basta sentar, isso parece bastante agradável. O desafio começa quando tentamos sustentar uma postura por um tempo mais prolongado que alguns minutos e acalmar a mente. Mesmo de pernas simplesmente cruzadas, logo vamos sentindo uma dor aqui, um desconforto ali e começamos a precisar urgentemente de nos mexer. Isso mostra como nosso corpo está pouco apto para sustentar uma mesma postura por um longo período de tempo. Outra coisa não seria de esperar, se pensarmos nos hábitos errados que desenvolvemos ao longo da vida. Sentamos em cadeiras, levamos uma vida sedentária mas estressada, comemos alimentos processados e sem energia vital, adquirimos vícios difíceis de deixar. Até que um dia, entramos numa aula de Yoga e nos damos conta de como nosso corpo está duro, pesado ou fraco. Lembramos-nos daquelas coisas que fazíamos em criança, sem esforço nenhum, como tocar nos pés com as mãos ou a ponte, e não entendemos o que aconteceu para se ter tornado tão difícil. Á medida que vamos praticando e purificando nosso corpo, vamos também refinando nossa consciência do que nos faz mal e abandonando naturalmente esses hábitos. Mas mesmo assim, precisamos contar com anos de toxinas acumuladas, assim como bloqueios físicos e energéticos. Por isso, cada dia, esquentamos, torcemos, alongamos e dobramos nosso corpo, de forma a torná-lo mais leve e forte. 
Mas mesmo assim, o asana no sentido dado por Patanjali, aquela postura ao mesmo tempo estável e confortável, continua a ser difícil de atingir. Como conseguir então essa estabilidade e conforto? Não por acaso, repetimos todos os dias a mesma série. Os asanas, mesmo aqueles que ao início nos assustavam, vão se tornando amigos íntimos, com que nos relacionamos nas nossas melhores e piores horas. E um amigo verdadeiro, que nos conhece realmente, pode não ser fácil de conseguir, mas é aquele com quem estaremos mais á vontade. Por isso, algumas vezes, chegamos a ter tal relação com as posturas que, por instantes, sentimos que poderíamos ficar ali horas, a mente vazia e limpa, espelhando o infinito. Mais do que uma mera sensação de bem-estar, é um vislumbre do Absoluto, em que estamos tão perto de nós mesmos que nada nos pode perturbar. Talvez essa seja uma das coisas que mais nos atrai na prática de asanas, que nos faz voltar apesar dos contratempos: uma semente permanece durante o resto do dia, a noção de que a felicidade está logo ali, dentro de nós, se apenas tivermos a capacidade de relaxar.
No Sutra 47, Patanjali diz que para conseguir chegar a essa qualidade do asana é necessário fazer um esforço sem esforço, o que em si mesmo parece um paradoxo. Mas é precisamente esse ideal de trabalhar nosso corpo e mente, sem forçar, que nos levará ao Asana firme e confortável e em última instância, a ter esses momentos de completa absorção pelo presente. Bandhas, Dhristi e Vinyasa são pontos chave, que vamos desenvolvendo com o tempo e que ajudam a tornar nossa prática leve e fluida. Quando queremos atingir uma postura sem consciência desses três aspetos, apenas vamos forçar o corpo a chegar a um ideal para o qual pode não estar preparando, resultando em lesões ou frustração.
Vinyasa é a união de movimento e respiração, o pilar que sustenta a prática, aquilo que deve ser nossa prioridade acima de tudo. Nenhum corpo abrirá sem uma respiração plena, sem Prana entrando. Respiramos profundamente e nossos tecidos recebem mais oxigênio, os nadis (canais energéticos) se purificam. Se travarmos a respiração precisamente quando a postura fica complicada, nosso corpo tensiona e entra no modo desesperado, em que a última coisa que vai fazer vai ser abrir.  Unir respiração ao movimento, se feito de forma adequada, faz-nos fluir, levando-nos a um estado meditativo. Depois do corpo cheio de Prana, é preciso mantê-lo dentro de nós.  Essa é uma função dos Bandhas. Com estes nós energéticos evitando que a energia se esvaia, a coluna fica sustentada e o Sushumna Nadi (o canal energético principal do corpo) livre, os movimentos se tornam mais fáceis e leves.  Os Dhristis, os pontos para onde dirigimos o olhar, equilibram a tendência natural dos sentidos de procurar uma distração. Assim, nos ajudam a concentrar, dando-nos espaço para entendermos o que realmente acontece com nosso corpo, naquele momento. Se nosso olhar passeia pela sala, nossa mente logo se encherá de informações que darão origem a milhões de pensamentos borbulhantes, que nos distrairão daquele que deveria ser nosso foco. Com o Vinyasa nos guiando, os Bandhas segurando nossa energia vital e o Dristhi recolhendo nossos sentidos, a prática se torna, sem dúvida, mais simples e sem esforço, permitindo-nos relaxar, alcançar e prolongar esses momentos de contemplação do infinito.
Por outro lado, também os outros Angas nos ajudam a desenvolver essa prática mais fluida. Yamas e Niyamas nos ensinam a tratar nosso corpo e mente com amor, a ser verdadeiros com nós mesmos, a aceitar o momento presente tal como é e a nos entregarmos a cada prática com devoção.  Da mesma forma, os asanas englobam Pranayama, já que trabalhamos com a respiração e Pratyahara, quando começamos a recolher nossos sentidos. Também Dharana (concentração), Dhyana (meditação) e talvez até mesmo Samadhi podem acontecer durante uma prática de asanas, se para tal estivermos preparados. O que isso nos diz sobre os oito Angas do Yoga? Que eles são aspetos de uma prática que é única e que permeia toda nossa vida, separada apenas para melhor entendimento intelectual. 

No Sutra 48 , é dito que se essa postura firme e confortável é alcançada, o praticante ficará livre das dualidades. Ou seja, frio e calor, seco e úmido, elogio ou crítica, não mais balançarão nosso equilíbrio. O corpo fica mais resistente as mudanças exteriores, menos vulnerável a doenças. Da mesma forma, nossa mente e emoções ficam mais estáveis, menos flutuantes. Estaremos no mundo e continuaremos a passar por altos e baixos, conquistas e perdas, mas isso, de repente, não nos abala mais tanto. Aprendendo a observar essa dualidade na prática de asana, compreendemos melhor nossos padrões e aprendemos a manter nosso centro perante as situações. Assim, passamos realmente a ser donos de nossas ações, realizadas com consciência e valores, não mais por mera reação automática ao que sucede. 
Mas se o Yoga se trata de chegar mais perto da nossa essência porque precisamos focar no corpo para transcendê-lo? Quando estamos doentes ou com uma dor forte isso parece tomar toda nossa atenção. Nos identificamos totalmente com algo que, na verdade, é passageiro. Algumas sensações físicas são tão intensas que nos absorvem por completo. Naquele momento, somos a dor, somos a dificuldade de respirar, somos a doença. Os asanas são primariamente terapêuticos. Se o corpo está livre de toxinas, cheio de energia vital, resistente e forte, deixamos de nos preocupar com ele, podemos finalmente sentar ou ficar em qualquer outra postura sem que isso nos incomode. Mas o processo de cura proporcionado pelos asanas não se resume ao corpo físico.  Quando o fortalecemos e limpamos, atuamos também no corpo causal e no corpo sutil, removendo os bloqueios que possam existir. É como se preparássemos terreno para que Dhyana e Dharana possam acontecer. 
Exatamente por os asanas trabalharem a nível físico, psicológico e energético é que são tão poderosos e transformadores. A descrição de Patanjali engloba todos esses níveis, já que fala de firmeza (criada pelo corpo), de conforto (sentido pela mente) e ser infinito interior (ou alma). Quando realizamos um asana, lidamos com a dualidade constantemente: entre corpo e mente, mente e alma, firmando nossas bases ao mesmo tempo em que criamos espaço, contraindo e expandindo, inspirando e exalando.  Assim, vamos observando, compreendendo e experienciando esses dois lados da mesma moeda, até que, finalmente, possamos ultrapassar essa separação. Sem a inquietação que surge quando precisamos nos identificar com uma das partes e que nos faz sofrer por nos sentirmos divididos, podemos enfim alcançar a plenitude na Unidade. Esse é talvez o verdadeiro tesouro escondido nos Asanas. 
Texto de Olga Rodrigues 
Imagens de Taeko, feitas nos workshops no Shala

Nyamas

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Com os Niyamas, seguimos nossa série sobre as oito partes do Ashtanga Yoga de Patanjali. Ao contrário dos Yamas, que guiam as relações com o exterior, os Niyamas nos dão a orientação quanto á relação conosco mesmos. São ações voltadas para o nosso interior, mas que facilitam a forma como nos movemos no mundo, abrindo caminho para os outros passos do Yoga. No Sutra 32 do Capitulo 2 dos Yoga Sutras, Patanjali cita os cinco Niyamas: Saucha, Santosha, Tapas, Svadhyaya e Ishvara Pranidhana.

Saucha
Refere-se à limpeza e pureza, tanto do corpo físico como da mente. Como em tudo, partimos do mais grosseiro para o mais sutil. Mas não se quer aqui pensar numa limpeza extrema, estéril. Pelo contrário, limpamos para uma maior consciência poder crescer, é uma ação positiva.
O corpo físico é a nossa casa neste mundo e através dele podemos experienciá-lo. Tantas e tantas vezes, as questões do corpo, como as doenças ou dores, não nos permitem estar em paz, fazem nos sofrer. É como uma casa entupida de coisas, acumulando poeira. A faxina é a parte difícil, mas depois desta logo nos sentimos mais aliviados, mais livres.  Então, preservar a limpeza do corpo, ainda que possa parecer uma preocupação extrema com o material ou supérfluo, é também um agradecimento por este organismo com que fomos presenteados. Em última instância, é também uma forma de aplicarmos os Yamas, respeitando os outros. Olhemos para a prática de asanas num Shala, como flui mais facilmente se os praticantes respeitam Saucha, tomando banho antes, cuidando da limpeza dos seus tapetinhos e suas roupas, evitando perfumes fortes. Isso torna mais leve o ambiente. É por respeitar Saucha, não do corpo, mas do lugar e consequentemente das pessoas que ali estão, que não devemos entrar de sapatos no Shala. Deixar as impurezas das ruas á porta é um gesto pequeno, mas com um grande significado de devoção pelo espaço sagrado de transformação que é um Shala.
No plano mais sutil da mente, Saucha é também fundamental, se queremos aumentar nossa capacidade de concentração e foco.  Se a mente é a lente pela qual captamos o mundo e se está cheia de poeira, é impossível enxerga-lo claramente, captamos somente uma imagem distorcida. Mas como limpá-la? Mais uma vez, através da observação dos nossos padrões, da forma como reagimos ao que nos rodeia. Por isso a prática de asanas é tão importante, ela pode ser um ponto de partida ótimo para esse caminho de auto conhecimento. No dia-a-dia, tendemos a alimentar padrões repetitivos e negativos, enchemos a mente com estímulos tamásicos e rajásicos. Logo, quando tentamos focar na respiração, dristhi e bandhas, descobrimos que milhões de pensamentos nos assaltam e interrompem, muitas vezes sem controle.  Á medida que a prática vai decorrendo, a mente fica mais clara, com menos oscilações e temos mais espaço para aproveitar o momento presente. Por isso nos sentimos tão relaxados depois. Limpamos nossa lente e o mundo parece mais simples.

Santosha
Significa contentamento, mas não aquele condicionado pelas situações que correspondem aos nossos desejos. Pelo contrário, é um contentamento perante a vida, em todas as suas nuances. Porque encaremos a realidade, para cada prazer há uma ilusão, uma expectativa e um desprazer no final, seja porque acabou seja porque a expectativa não foi correspondida. E nenhum problema em fazer coisas prazerosas, mas podemos não nos identificar com isso, de forma a que quando chegar o outro lado da moeda, não desesperemos. Quando estabelecemos Santosha dentro de nós, estamos satisfeitos com o que a vida nos traz. Precisamos reconhecer que o mundo não gira ao nosso redor, que se rege por leis universais e que nem sempre as coisas acontecem como preferiríamos. Porque vejamos: como poderia o mundo ser perfeito para todos, se a ideia de perfeição de cada um é diferente? Uma pessoa adora dias ensolarados e quentes, a outra prefere dias de chuva, mas a outra gosta de dias ventosos e frios. Como agradar a todos? E mais, a Natureza precisa de esses contrastes para funcionar. Então, Santosha requer a maturidade emocional de entendermos que o Universo não se conformará a nossa vontade e que não estamos sempre no lugar do condutor. Mas traz consigo a gratidão, uma forma de amor. Quando por exemplo, trazemos Santosha para a prática de asanas, paramos de querer chegar mais longe e de forçar o corpo a ir onde ele, simplesmente, não está preparado para ir. Aí sim, podemos agradecer, respirar e fluir, ganhando muito mais benefícios do que quando somente pensávamos na postura perfeita. 

Tapas
É muitas vezes traduzido como austeridade, mas a sua raiz traz a ideia do fogo que queima as impurezas e que ao mesmo tempo gera energia. Nenhum outro elemento tem a capacidade de transformar como o fogo. A água pode limpar, mas somente remove o que está a mais. O fogo liquefaz, molda, reduz ou dilata, podendo mesmo destruir. Neste sentido, é o fogo da autodisciplina, que torra as sementes dos samskaras, aqueles padrões que nos fazem agir condicionados por experiências anteriores, sem consciência ou atenção, e que parecem persistir mesmo contra nossa vontade, impedindo que estes germinem novamente. É o fogo da autodisciplina, que nos faz acordar antes do nascer do sol para praticar, que nos faz estudar sobre Yoga, que nos ajuda a purificar as nossas ações. É o fogo da vontade interior, aplicado positivamente. É também o calor produzido pelas práticas de Asana e Pranayama, que faz o sangue circular com mais força e eliminar bloqueios físicos, emocionais e energéticos.
É Tapas que leva a nos superarmos, sairmos da zona de conforto, conhecermos nossos limites, irmos um pouco mais além e descobrirmos que podemos dar muito mais. Mas claro, isso não significa nos colocarmos intencionalmente no sofrimento ou ignorar as dores que sentimos, sejam elas físicas ou emocionais. Todos sabemos que os momentos de crise são uma oportunidade enorme de crescimento, mas não por isso vamos provoca-los. Talvez esse seja mais um dos benefícios do Yoga, aprendermos a diferença entre dor e desconforto, tensão e atenção. Voltemos à prática de asana, se nos sentimos demasiado confortáveis nesta, é hora de avançar. Uma postura nova, se adequada, causa um desconforto saudável daqueles que obrigam a nos enfrentarmos. De repente, o ego diz que temos que conseguir chegar “lá” seja como for, a respiração fica ofegante, ao mesmo tempo sentimos medo e tensionamos o corpo, ocasionando dor e pensamos: “Mas eu já sabia que esse não era o melhor caminho?” E de novo, aprendemos a lição, que julgávamos aprendida. Só que cada vez avançamos um pouco mais nessa compreensão, entendemos melhor o nosso padrão. Ou mesmo nos asanas que já fazemos há anos, surge um desconforto numa parte do corpo e aí entra Tapas. Não como o fervor fanático que nos faz forçar a postura, machucando-nos. Mas como a autodisciplina que nos faz dominar o ego teimoso, que insiste em fazer o que sempre fez. Talvez outra parte do corpo precise abrir, talvez algo tenha mudado, mas trazendo a nossa atenção e rompendo o padrão, podemos passar esse limite que surgiu e talvez até aprofundar a postura.
Tapas é tão importante que é a primeira palavra do segundo capítulo dos Yoga Sutras. Neste primeiro sutra, Patanjali diz que Tapas, Svadhyaya e Ishvara Pranidhana (os seguintes Niyamas) constituem Kriya Yoga, o Yoga da ação. Ou seja, estes três Niyamas são ações práticas de auto-purificação, auto-observação e auto-conhecimento.
Svadhyaya
É o estudo, que pode ser de nós mesmos ou das sagradas escrituras. O auto-estudo é imprescindível: conhecer como está o corpo, o que desponta certas emoções, o que nos faz reagir sem pensar, que obstáculos nos colocamos a nós mesmos impedindo-nos de avançar, entre outros tantos mecanismos. Somente compreendendo como funciona nosso corpo e mente, podemos ultrapassar a identificação com estes e enxergar nosso verdadeiro Ser.
O estudo das escrituras e livros como a Baghavad Gita ou o Yoga Sutras também é fundamental. Eles estão repletos de sabedoria milenar e universal, que podemos aplicar na nossa vida. Mas como dizia Pattabhi Jois: “99% Prática 1% Teoria”. Podemos ler cinquenta livros sobre Samadhi, se desconsiderarmos todos os outros Angas, de nada servirá. Trata-se de praticar o que se aprende e não reduzir o estudo das escrituras a um debate filosófico.

Ishvara Pranidhana
Entrega a Ishvara é como uma chave mestra que abre as portas de todos os outros aspetos do Yoga. De fato, no primeiro capítulo, no sutra 23, Patanjali diz que Samadhi pode ser alcançado por Ishvara Pranidhana. No sutra seguinte, descreve Ishvara como uma alma especial, intocada por aflições, ações e seus frutos. É a Consciência Absoluta, livre do Karma e seus resultados.  A palavra que melhor traduz para português é Deus, porém, na sociedade ocidental, a maior parte de nós está condicionada escutá-la e pensar em um ser superior que age sobre o mundo, separado dele. A ideia de Ishvara é um pouco mais abrangente: é como uma alma que rege o Universo, mas que ao mesmo tempo o compõe. É a inteligência criadora e também a própria matéria. Ou seja, somos todos parte dessa Consciência e por isso Ishvara Pranidhana é rendermo-nos a nossa natureza essencial. 
Ishvara Pranidhana é também agir sem se apegar aos resultados, admitir que não estamos no controle. Temos poder de decisão, mas existe todo um Universo que recebe e conforma o nosso caminho, mesmo que ás vezes seja de maneiras que não entendemos completamente. Isso não significa ficar na passividade, não agir e esperar que Ishvara faça tudo por nós. Uma antiga história sufi conta sobre um mestre e um discípulo que viajavam pelo deserto. Á noite, o discípulo ficou responsável por amarrar os camelos, mas não o fez, simplesmente orou, pedindo a Deus que os guardasse. De manhã os camelos tinham desaparecido. O mestre perguntou: “O que aconteceu? Porque não prendeu os camelos?” e o discípulo respondeu “Mas eu pedi a Deus que os guardasse!” O mestre retrucou “Confia em Deus, mas amarra os camelos primeiro”. Assim é na vida, precisamos primeiro fazer nossa parte, fluindo com as regras do Dharma, para depois podermos entregar a Ishvara.
Pensemos na prática de Yoga como um jardim. Com Saucha limpamos a terra, com Santosha agradecemos a chuva, o sol e o vento, com Tapas queimamos as sementes das ervas daninhas que insistem em germinar, com Svadhyaya aprendemos mais sobre como criar um solo fértil e como plantar de acordo com as estações. No final, entregamos a Ishvara, confiando que qualquer que seja o resultado está de acordo com as leis do Universo. Agora, os frutos serão aqueles que plantamos. De sementes de abóbora não nascerão melancias, da mesma forma se plantamos falsidade não teremos verdade.  Ishvara Pranidhana, fazemos nossa parte e o resto virá.  De nada adianta ficar em baixo da árvore dias a fio, implorando ao fruto verde para cair. Se esperarmos pelo momento certo, provaremos um fruto suculento e saboroso, sem frustrações nem apego.  E ás vezes, algumas sementes não germinarão e saberemos que também isso é certo. Ishvara Pranidhana é estar pleno porque o Universo é pleno, é a compreensão final de que tudo o que precisamos está dentro de nós e por isso é o caminho mais direto para Samadhi.
Yamas e Niyamas são os pilares de uma prática de Yoga sólida e coerente. Estabelecendo-os e aplicando-os na nossa vida, estendemos a prática para todo o nosso dia, muito para além das duas horas no tapetinho. E assim, Yoga deixa de ser algo que fazemos e passa a ser algo que faz parte de nós.

Texto: Olga Rodrigues
Foto: Taeko

Ritmo & Tradição

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Ashtanga Yoga: Ritmo e Tradição
Quando se fala da tradição do Ashtanga, algumas perguntas inevitáveis surgem sempre. Provavelmente, as mesmas perguntas já passaram pela mente de todos os praticantes: “Não é cansativo fazer sempre a mesma coisa?”, “Por que seis dias por semana?” “Por que parar nos dias de Lua?”. A um primeiro olhar, podem até parecer dogmas, regras rígidas, mas têm um sentido. São linhas gerais que quem as cumpre sente como adequadas, mas requerem perseverança e devoção.
Repetição 
A repetição da mesma série todos os dias tem vários propósitos e resultados, mas poderia resumir-se a uma palavra: ritmo. A Natureza funciona em ciclos, que se repetem ritmicamente. Respiramos sempre na mesma sequência, com os mesmos músculos e órgãos, mas isso não quer dizer que não possamos explorar essa respiração, conseguindo diversos resultados como ficar mais ativos ou mais calmos. Da mesma forma, os asanas (posturas) repetidos por tantas e tantas vezes nos dão a oportunidade de nos explorarmos, de conhecermos melhor nosso corpo e mente. Se a cada prática mudamos a série, conforme nossa preferência ou habilidade, o foco fica nessa mudança e em aprender os asanas novos. Quando o corpo memoriza a série, podemos trabalhar com os aspetos mais sutis da prática.
O ritmo nos libera dos vrttis, das flutuações da mente. Sendo sempre a mesma série, não precisamos pensar o que vamos fazer hoje nem nos deixamos levar pelo ego na hora de elaborar uma sequência, seja nos limitando, seja forçando a mais do que aquilo para que estamos preparados. Mais importante, a repetição dá-nos autonomia. Em qualquer lugar do mundo, podemos entrar num Shala de Ashtanga Yoga e simplesmente praticar, ou mesmo fazê-lo sozinhos, quando não temos acesso a um Shala. O Ashtanga é para todos os tipos de pessoas, não exige que estas se dediquem exclusivamente ao Yoga e talvez por isso seja tão importante essa independência. Isso não quer dizer que não seja necessário um professor, que é fundamental, mas este é apenas um facilitador, o caminho é de cada um e tem algo de profundamente liberador nisso.
Mas a verdade é que a prática não é sempre a mesma. Para além da progressão nas séries, que vai transformando constantemente nossa prática, cada dia somos pessoas diferentes, com corpos diferentes. Uma das grandes chaves do Yoga é a auto-observação. Como posso observar algo se constantemente a forma se altera? Com a mesma sequência de asanas, conseguimos observar como realmente estamos, que efeito aquela comida teve no nosso corpo, como aquela discussão afetou nossas emoções ou como a mente nos controla segundo diferentes influências.  Ao longo do tempo, podemos observar nossa evolução, como conseguimos respirar onde antes ficávamos ofegantes, como relaxamos onde antes tínhamos medo. Não para agradar nosso ego, mas para recordarmos sempre que tudo passa e que temos em nós as respostas para ultrapassar os desafios, sejam eles um asana difícil ou uma mudança grande na nossa vida. A repetição se torna assim uma estratégia para o auto conhecimento.
Talvez o mais importante seja que o ritmo permite finalmente nos entregarmos ao momento presente e aceitar as coisas tal como elas são. Dias bons ou ruins, com o corpo duro ou flexível, cansados ou cheios de energia, a mente focada ou alterada, a série é a mesma, e torna-se um porto de abrigo, onde podemos observar esses opostos e aceitar a dualidade natural da vida. Só assim a podemos transcender e alcançar a unidade, que é afinal, a essência do Yoga.  Como num japa, em que cantamos repetidamente o mesmo mantra, também nessa repetição rítmica podemos finalmente relaxar na compreensão de que o silêncio, o absoluto, o Todo, é a única coisa que permanece. 
Rotina
Tradicionalmente se pratica seis vezes por semana, com descanso ao Sábado, aulas estilo Mysore toda a semana e guiada uma ou duas vezes por semana. Mais uma vez, o ritmo é a chave.
Esta rotina faz com que a prática seja inserida no ritmo diário, incorporada à nossa vida de tal forma que seja tão natural praticar quanto tomar banho. De fato, a prática funciona como uma limpeza de padrões, emoções e bloqueios, que não nos permitem enxergar o nosso verdadeiro Eu e que poluem a nossa vida. A prática restabelece o equilíbrio dos nossos corpos, por isso a Primeira Série é chamada Yoga Chikitsa (Yoga Terapia). A nível energético, também nossos nadis (canais energéticos) são purificados. Pensando nestes termos, voltamos à analogia do banho: É melhor tomar um banho prolongado uma vez por semana ou tomar um banho curto todos os dias? A resposta é obvia e por isso é fácil entender que se não se tem tempo, é preferível fazer menos cada dia, mas mais vezes por semana. Se praticamos só quando nos sentimos bem ou dispostos a isso, nunca chegaremos ao ponto em que praticar é tão natural que não precisamos mais travar batalhas internas de “vou /não vou”. A energia dissipada na indecisão é um desperdício, se pensarmos no quanto nos beneficiamos com a prática. E o que é pior, pelo caminho, vamos criando o samskara (impressão) da indecisão e da culpa, enquanto poderíamos estar construindo o samskara da prática como parte indispensável do nosso dia.
Muitas vezes também se escuta a frase “Mas eu não gosto de rotina, nem de repetição”. Realmente, a mente detesta não poder escolher. Como um macaco bêbado, ela pula de galho em galho, fazendo mil manobras de diversão, para simplesmente não parar. Retirados os vrttis de “que asana vou fazer?” ou “será que pratico hoje?”, a mente tem menos poder para nos distrair, somos obrigados a olhar para o que acontece dentro de nós, a rendermo-nos ao silêncio interior, em que a mente tem que ficar quieta. A prática estilo Mysore reduz as distrações de ter que escutar ou seguir um professor, dando mais espaço para escutarmos nosso diálogo interno e poder finalmente reduzi-lo.
No sutra 1.12, Patanjali diz que os vrttis são cessados por abhyasa (prática) e vairagya (desapego).  No sutra 1.14, descreve abhyasa como a prática constante, continuada por um período longo sem interrupções, feita com devoção. As pessoas chegam ao Ashtanga por diferentes razões e diversas motivações, todas válidas. Devemos ser honestos com nós mesmos e nossas prioridades. Talvez para quem queira somente um corpo em forma não seja tão importante esse ritmo de seis vezes por semana e a verdade é que está tudo bem com isso. Mas para quem busca “chitta vrtti nirodaha”, uma mente sem flutuações, é crucial seguir o conceito de abhyasa contido nos Yoga Sutras. O curioso é que embora ao início tenhamos de dedicar muita atenção e até fazer algum esforço para conquistarmos essa continuidade, se o fazemos de coração aberto, com plena confiança e devoção, se torna cada vez mais fácil, até que um dia se estabelece e instala. 
Vairagya, o desapego, está também presente nessa rotina de seis vezes por semana. Ao praticar a auto-observação todos os dias, se torna mais claro o que não nos faz bem, que hábitos e relações precisamos deixar ou transformar. Não por acaso, muitos praticantes deixam de comer carne ou de fumar ao longo do tempo, sem que sejam doutrinados para tal. Simplesmente, dentro de si, começam a sentir que é o certo fazer para viverem alinhados com o seu ser. 
Pausas
A tradição diz que não devemos praticar em dias de Lua Cheia ou Lua Nova nem nos três primeiros dias de menstruação. 
Os dias de Lua nos afetam muito, energeticamente, o que não é de admirar, se considerarmos a influência da Lua sobre as marés e a nossa constituição de 70% de água.  Quem não sentiu já a energia explosiva de uma noite de Lua cheia ou a tendência à introspeção na Lua Nova?  A Lua está também muito relacionada com a mente e como sabemos, quando a mente está perturbada temos mais probabilidade de nos magoarmos.  
As mulheres devem ainda se abster de praticar nos três primeiros dias de menstruação. Guruji recomendava ficar todos os dias sem praticar, até porque na Índia as mulheres não trabalham nem cozinham nesses dias. Isso pode nos chocar, já que parece uma desqualificação de uma cultura machista do nosso papel enquanto mulheres. Mas isso é se encararmos o período menstrual como uma inconveniência. No Ayurveda, assim como em muitas culturas indígenas ao redor do mundo, é visto como um momento de desintoxicação, sendo mais um privilégio do que um problema. Por isso, é importante honrar o ciclo menstrual, praticando ahimsa (não violência) também com nós mesmas, ao não desperdiçar energia que seria utilizada para esta função natural e ao não aquecer demasiado o corpo, que nesta época já tem um calor interno aumentado.
Quando praticamos, utilizando os Bandhas e focando na respiração, equilibramos a ação Apana Vayu (descendente) com Prana Vayu (ascendente). No período menstrual, Apana Vayu está e precisa estar mais ativo, especialmente nos três primeiros dias, por isso não é benéfico contradizer esse movimento descendente, que favorece a eliminação. Também por essa razão, nos restantes dias, não devemos realizar posturas invertidas. 
Estas pausas são um momento de praticar vairagya, o desapego. Mais uma vez, temos de nos render aos ritmos naturais da Lua e do nosso próprio corpo, aprendendo a descansar mesmo que seja muitas vezes contra nossa vontade. São pequenos exercícios mensais de desapego, que nos ensinam a deixar ir cada vez mais facilmente.
Precisamos reconhecer a sorte de ter um sistema que nos dá a oportunidade de nos conhecermos e transformarmos, com a segurança do conhecimento passado por gerações de sábios. Mas questionar está na natureza humana. A sugestão que fica é: ponha tudo isto á prova, se comprometa a seguir estas premissas por um longo tempo, deixe-se levar pelo ritmo, observe-se e escolha por si.  Talvez chegue á conclusão que nada disto faz sentido ou talvez chegue o dia em que as raízes de abhyasa e vairagya se transformem em asas. 
Texto: Olga Rodrigues
Fotos: Taeko