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Agni: o fogo digestivo

Agni: o fogo digestivo

Agni: o fogo digestivo 150 150 Kaka
Agni
Se nosso corpo é um templo, no centro dele está a chama do altar para Agni Deva, o Deus do Fogo, que tem o poder de purificar aquilo em que toca.  A força, luz e calor dessa chama dependem das oferendas que fazemos e de quanto nos esforçamos para mantê-la acesa. 
Isso é mais do que uma metáfora: o Agni, nosso fogo digestivo, realmente tem as qualidades de uma fogueira. É quente, aromático, seco, penetrante e leve. Com liquido frio ele se apaga, com alimento em excesso é abafado e se está forte demais termina rápido, reduzindo tudo a cinzas. É a inteligência que seleciona o que vem do mundo, separando o que vale e nos nutre do que deve ser eliminado. Sem ele, não teria como tirar de cada alimento proteínas, hidratos de carbono, gorduras, vitaminas e sais minerais. Falamos aqui do Agni do sistema digestivo, o Jatharagni, mas na verdade existem vários Agnis, em todos tecidos e células. Mesmo a mente precisa de um fogo que digira as impressões que captamos ou ficaríamos tão absorvidos por elas que seria difícil viver. É ele que seleciona aquilo a que devemos prestar atenção, já que são milhares de informações que entram pelos nossos sentidos a cada momento. O mesmo acontece com as emoções: precisamos digeri-las para avançar, se não ficaríamos constantemente presos ao que aconteceu há anos atrás. Agni é transformação.  Por isso é tão importante que esteja equilibrado, só assim cada alimento ou impressão se poderá transformar naquilo que nosso corpo e mente necessitam. Podemos comer a refeição mais saudável de todos os tempos, tudo orgânico e fresco, se passar pelo nosso corpo e não for digerido, de que nos serve?
Mas como saber se nosso fogo está com a chama no ponto certo? Tem vários fatores que o indicam, só precisamos observar como nosso corpo reage à comida ou falta dela. Se o Agni está equilibrado, nos sentiremos energizados e satisfeitos após uma refeição, sem qualquer desconforto. Após 2 horas, estaremos com o estomago vazio, sinal que a refeição foi digerida corretamente. As eliminações serão regulares e bem formadas. Teremos fome de verdade, aquela que vem acompanhada de uma sensação física e não somente vontade de comer.  Esse apetite virá em horários certos: leve de manhã, forte ao meio-dia e médio no final da tarde. O Agni tem toda uma relação com o Sol e por isso mesmo é mais intenso quando este está a pico e mais leve quando este está subindo ou se pondo.  
Um Jatharagni equilibrado tem um efeito geral no corpo. Sem essa primeira digestão feita corretamente, todos os outros tecidos ficariam deficientes. Ao mesmo tempo, dá também uma sensação geral de bem-estar. Quem sofre de constipação ou gastrite constantemente sabe que isso afeta diretamente o humor. Faz sentido, se pensarmos que a região abdominal é exatamente a do chakra do plexo solar, o Manipura Chakra, que governa a autoestima e a força de vontade. Quando a energia pode fluir livremente por esta área, nos sentimos mais confiantes e seguros.
Por outro lado, o corpo chama a nossa atenção para o fato de o Agni não estar funcionando corretamente quando depois de uma refeição nos sentimos enjoados, cansados, com a barriga dilatada, azia ou gases. Ás vezes esses desconfortos se tornam algo tão recorrente que os vemos como naturais, mas se trata apenas de um desequilíbrio constante. A consequência disso é a formação de Ama, o conjunto de toxinas (como o colesterol) acumuladas pela digestão incorreta dos alimentos. Do sistema digestivo, Ama se propaga para outros tecidos e células, sendo uma das principais causas de doença. É o resíduo que fica na chaminé, entupindo a saída do ar.  É o oposto do Agni: frio, denso, pegajoso e de odor fétido. Quando está presente, a língua fica com uma camada espessa esbranquiçada ou amarela, hálito, suor e eliminações com odor forte e desagradável, as fezes afundam no vaso, temos falta de apetite, depressão e fadiga. 
Mas o Agni em desequilíbrio não é sempre igual, tem três padrões: Vishana, Manda e Tikshna. Vishana Agni é aquele fogo variável, soprado por lufadas de vento, acendendo e apagando constantemente, mais comum em pessoas com constituição Vata. O apetite é muito irregular, sendo que ao meio dia pode ser tão pouco que a pessoa se esquece de comer, mas voltando em horários inapropriados, como a meio da noite. Essa irregularidade aumenta Vata, causando gases.  Manda Agni é aquela fogueira feita com lenha úmida, que parece não pegar nunca e que se mantém constantemente baixa. É mais comum em pessoas de constituição Kapha, que costumam ter um apetite leve mas constante, podendo comer a qualquer hora do dia, muitas vezes por questões emocionais ou sociais (afinal, esse Dosha está muito ligado ao afeto). O metabolismo é lento e a digestão se arrasta por demasiado tempo, dando sensação de peso e náuseas. Já Tikshna Agni é aquele fogo que queima tudo e apaga rápido. É mais comum em pessoas de constituição Pitta, que têm um apetite voraz e um metabolismo rápido. Ficam irritadas quando não comem, exageram na quantidade de comida mas têm fome passado uma hora. O problema é que os nutrientes não são devidamente digeridos e surge azia, queimação e gastrite. 
Então, como equilibrar o Agni? Seguem algumas dicas:

  • Como foi dito antes, é importante comer de acordo com o ciclo natural, fazendo a maior refeição do dia entre o meio-dia e as duas horas da tarde. O jantar deve ser leve e antes das oito horas da noite. Se no levantamos todos os dias cansados e sem energia, mesmo tendo dormido horas suficientes, pode ser por jantarmos demasiado ou muito tarde. Em vez de repousar, nosso corpo precisou ficar trabalhando para digerir a última refeição. Um provérbio indiano diz: Coma de manhã como um príncipe, ao almoço como um rei e ao jantar como um monge. 
  • Nosso sistema digestivo precisa de um tempo para digerir o que comemos. Se petiscamos constantemente o levamos á exaustão. Por isso, devemos comer somente quando temos fome. Talvez isso vá contra aquilo que sempre escutou, mas se trata mais de seguir a sabedoria do corpo do que seguir um conjunto de regras fixas. 
  • Não devemos comer quando estamos estressados, agitados ou rodeados de estímulos como a televisão. Quando mais tranquilo estiver nosso entorno e nossa mente, mais Agni Deva se sentirá respeitado e mais se apresentará.
  • Muito liquido junto com a comida, bebidas ou alimentos gelados apagam o Agni e devem ser evitados.
  • Pouca lenha não deixa o fogo acender, muita o abafa. Para saber a quantidade ideal de comida, basta colocar as duas mãos em concha e imaginar uma porção que ali caiba. Parece pouco, mas gradualmente vamos aprendendo a não terminar a refeição somente quando nosso estômago está completamente cheio. Segundo o Ayurveda, devemos preenchê-lo com dois quartos de comida, um de liquido e um de ar. 
  • Quanto mais frescos os alimentos, mais Prana têm. Por isso, sempre que possível, devemos evitar comida processada, guardada na geladeira por muito tempo ou congelada.
  • Comer de acordo com nossa constituição e clima é fundamental para equilibrar o Agni. Para isso, precisamos observar os atributos: se, por exemplo, o tempo está úmido, pesado e frio ou se já temos uma constituição Kapha, devemos evitar alimentos com as mesmas características, como um sorvete ou uma vitamina de banana.
  • As especiarias e ervas aromáticas estimulam o Agni, facilitando a digestão. Alguns exemplos são: gengibre, cominhos, coentros, cardamomo, manjericão, cúrcuma, asa fétida e pimenta negra ou caiena.
  • Quem tem Tikshna Agni, um fogo exacerbado, deve evitar o sabor picante.
  • O gengibre é considerado pelo Ayurveda o “remédio universal”, por suas propriedades e versatilidade. Tomar chá de gengibre antes e depois das refeições ajuda na digestão. Para casos em que o Agni está muito fraco pode ser tomada a seguinte mistura, meia hora antes das refeições: um pedaço de gengibre ralado e espremido, a mesma quantidade de suco de limão, uma pitada de sal e uma colher de chá de açúcar mascavo.

Muitas vezes nos queixamos que não temos tempo para fazer um ritual diário que nos aproxime mais do Absoluto. Mas nos esquecemos de que pelo menos três vezes por dia oferecemos a comida a Agni Deva, mensageiro dos outros deuses. Rendermo-nos a suas leis e deixar de lutar contra relação causa-consequência (se comemos muito tarde, acordamos cansados, por exemplo), é mais uma oportunidade de ganhar humildade perante as leis do Universo. Para além disso, este é um Puja para o qual não precisamos de nada de especial, somente nossa concentração e gratidão por nos podermos alimentar. Ao fazermos da refeição um ato de devoção, entregamo-nos ao divino que está dentro de nós.
Texto de Olga Rodrigues
Imagens do casal Taeko & Tom Spindola