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Yoga

Dinacharya

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Estabelecer uma prática diária não é tarefa fácil. Praticar todos os dias, independentemente do que aconteça, não se deixando influenciar pelos inúmeros eventos que nos parecem levar noutro caminho, requer perseverança, disciplina e amor. Mas talvez um dos segredos para fazer isso sem sacrifício ou esforço seja criar uma rotina que torne praticar algo tão natural quanto escovar os dentes. Só que, para a maioria de nós, rotina é uma palavra aborrecida. Fazer sempre a mesma coisa todo o dia? Seguir sempre os mesmos passos? Nossa mente não gosta muito disso, afinal é muito mais divertido inovar, inventar, diversificar. Mas olhemos a Natureza. O dia segue a noite, é simples assim. A semente brota, a planta cresce, nasce uma flor da qual sai um fruto e nele existe uma semente que dará origem a uma nova planta. Independentemente de nossos anseios e dramas pessoais, a Vida flui em ciclos que se repetem eternamente, num ritmo sobre o qual não temos nenhum controle, mas que nos influencia. Quando entendemos como esses ciclos agem dentro de nós, podemos entrar nessa dança de uma forma mais harmoniosa. E com o tempo, vamos experienciando e observando por nós mesmos os benefícios de fluir nesse ritmo mais natural, do qual uma prática diária faz facilmente parte.

Entretanto, isso não acontece de um dia para o outro. Até porque normalmente, temos muitos hábitos que repetimos automaticamente, por anos e anos, mesmo que saibamos que não nos fazem bem. Nosso corpo e mente tendem a seguir o caminho que sempre trilhamos. Mais do que isso, a dificuldade de deixar certos hábitos se prende com a identificação de nosso ego com o que estes representam. Somos tão apegados, que até vícios de que aparentemente não gostamos nos custam a abandonar, como se ao fazê-lo deixássemos para trás uma parte de nós. E de fato, é isso que acontece, mas precisamos lembrar que o que estamos deixando para trás são fragmentos de um eu ilusório, já que nossa essência seguirá imutável. E que ao limpar o velho, abrimos o espaço para o novo. Como humanos que somos, o vazio em todo seu potencial nos assusta, então precisamos ver onde nos vamos agarrar antes de soltar o antigo. Então, muitas vezes antes de pensarmos em cortar hábitos antigos, podemos pensar em criar novos, que nos levem a gerar mais espaço e luz, que nos deem o discernimento para depois abandonar o que não nos serve mais.

Entrar numa rotina diária que seja uma sucessão de passos nessa direção pode nos ajudar a criar uma estrutura que não só nos fará sentir melhor como apoiará a prática de Ashtanga. No Ayurveda isso se chama Dinacharya. Esta segue uma lógica, é dividida por fases segundo o Dosha que predomina em cada uma. Por exemplo, das 6h ás 10h da manhã é a hora Kapha, que traz consigo as qualidades deste Dosha, que é pesado, lento, frio, suave e pegajoso. Quando aumentamos esses atributos, dormindo, comendo alimentos frios e doces, como iogurte e pão, o que acontece é que os reforçamos, levando ao seu agravo e gerando desequilíbrios como sensação de peso, produção de muco ou náuseas. A ideia de seguir o Dinacharya é exatamente equilibrar a tendência natural de cada fase do dia, para que nenhum Dosha se agrave.

O Ayurveda diz que devemos acordar com o nascer do sol, equilibrando a tendência Kapha dessa hora. A primeira coisa a fazer quando despertamos é agradecer. Parece simples, mas quantos dias começamos pensando no que temos que fazer, nos problemas do dia anterior ou resistindo a acordar? Estamos vivos e não há nada melhor que isso. Um dia novo começa e com ele se acercam milhões de possibilidades de encontros, experiências, vivências e aprendizados que não podemos imaginar, por muito previsível que nos pareça o quotidiano.

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Quando nos levantamos, começamos a apoiar nosso corpo nas tarefas de eliminação que ele levou durante a noite, enquanto nossa mente e sentidos descansavam. A primeira coisa que devemos fazer é tomar um copo de água morna com limão. Isso ajuda a hidratar nosso corpo, a eliminar toxinas e a acordar o Agni, o fogo digestivo, adormecido. Para pessoas de constituição Vata, pode ser adicionado um pouco de sal para facilitar a hidratação, para as de Kapha uma colher de chá de mel, por sua propriedade expectorante. Já para pessoas Pitta, o sabor ácido deve ser usado com cautela, pelo que não se deve passar de 10 gotas de limão ou em caso de problemas como hiperacidez, usar só água morna.

Depois devemos fazer nossas eliminações. Isso é essencial para começarmos o dia renovados, partindo do zero. Se iniciarmos nosso dia com o corpo trabalhando ainda para processar os alimentos do dia anterior, teremos naturalmente menos energia para o dia que segue. Isso facilita muito nossa prática também. Tendo os órgãos internos vazios, as posturas podem surtir o efeito desejado, já que muitas são verdadeiras massagens dos órgãos internos. Por isso também não é aconselhado comer nem tomar grandes quantidades de liquido antes de praticar. Para as pessoas que têm dificuldade de evacuar espontaneamente todas as manhãs, é aconselhado tomar um copo de leite morno com ghee antes de dormir.

Para deixarmos para trás tudo o que pertence ao dia anterior, continuamos nossa rotina ao escovar os dentes, de preferência com um creme dental que tenha um sabor amargo ou adstringente. O Ayurveda recomenda ainda raspar a língua com um raspador próprio para isso e aplicação de cinco gotas de óleo de gergelim em cada narina. Antes do banho, pode ser feita uma Abhyanga, uma massagem com óleo de gergelim para Vata e Kapha e óleo de coco para Pitta. Tomar banho logo de manhã purifica nosso corpo e mente, nos preparando também para a prática. Não por acaso Saucha, limpeza, é um dos Niyamas.

A prática de Ashtanga se inclui perfeitamente na lógica do Dinacharya, já que esta é a hora ideal tanto para fazer exercício como para meditar. Movimentar e esquentar o corpo equilibra a tendência Kapha. Ao mesmo tempo, nossa mente reflete o momento naturalmente sátvico do dia, que acontece no nascer e no pôr do sol.

Depois de praticar, alguns cuidados devem ser tomados também. Mudanças bruscas de temperatura devem ser evitadas, pelo que devemos trocar de roupa se estamos suados ou pelo menos colocar uma roupa quente. Devemos esperar pelo menos meia hora para comer e tomar banho. Isso porque aumentamos a circulação para nossos órgãos e glândulas. Quando comemos ou tomamos banho, nosso corpo termina abruptamente de absorver os benefícios da prática para levar o sangue para a pele ou para iniciar a digestão. Ao lavarmos nosso corpo também impedimos a reabsorção dos minerais eliminados pelo suor. A nível energético, o Prana que ainda estava sendo absorvido se esvai para outros lugares. Da mesma forma, nossa atitude de entrega e devoção deve se estender, de preferência para todo o nosso dia, não se limitando ao tempo no tapetinho.

Quanto aos horários de comida é dito que devemos comer um pouco de manhã, fazer nossa maior refeição á hora de almoço e jantar de forma leve á noite. Isso porque nosso Agni segue o ritmo do Sol, que é mais forte ao meio dia. Para respeitar nosso fogo digestivo devemos também comer somente quando temos fome, sem distrações, num lugar tranquilo e evitando bebidas e comidas geladas.

Das 14h ás 18h é o horário Vata, ótimo para trabalhos mentais e criativos. Das 18h ás 22h volta o horário Kapha, e naturalmente vamos acalmando nosso ritmo a essa hora. No pôr-do-sol, Sattva volta a predominar, sendo outro ótimo momento para uma prática espiritual como meditação.

À noite, um jantar leve facilita o sono e o descanso, não devendo ser feito depois das 20h da noite. Isso ajuda a acordar mais leve no dia seguinte e é sentido claramente na prática. Se comemos demais á noite, indo dormir depois, será muito difícil para nosso corpo digerir tudo, formando Ama. Esta é o conjunto de biotoxinas acumuladas por uma não digestão dos alimentos consumidos, que nos faz acordar com sensação de peso e dores no corpo, sobretudo nas articulações.

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Também nossos sentidos devem ser nutridos com impressões leves, evitando filmes ou estímulos audiovisuais fortes à noite. De fato, a partir das 20h o ideal seria preparar nosso corpo e mente para descansar, não indo dormir depois das 22h. Pela correria de nossas vidas isso é difícil, mas também o é acordar antes do nascer do sol se dormimos muito tarde. A partir das 22h é de novo o horário Pitta. Se mantemos os estímulos até essa hora, naturalmente vamos aumentar nossa atividade depois. Por isso muita gente diz que não consegue dormir a noite, que é quando se sente mais ativo. Das 2h ás 6h é o horário Vata e não por acaso coincide com o horário em que a maior parte das pessoas que sofre de insônias relata que acorda e já não consegue voltar a dormir. Descanso e sono são necessidades tão importantes quanto a alimentação, por isso ter uma rotina que favorece sua boa qualidade é fundamental.

Estas não são regras fixas, mas sugestões que podemos seguir, pôr á prova e experienciar seus verdadeiros benefícios. Isso é Yoga também: estar presente, atento àquilo que acontece com nosso corpo e mente. Aos poucos, se sintonizar com um ritmo natural em vez de seguir apenas desejos e aversões de forma automática, romper padrões de comportamento instalados por anos. E através da observação, descobrir que entrar nessa dança é uma busca constante, um caminho que não tem perfeição ou fim, um exercício de aceitação da inquestionável impermanência da Vida.

Texto de Olga Rodrigues
Fotos da Lagoa da Conceição, arquivo pessoal

O Despertar de um Sonho

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Sentado na terra do sol nascente, cedo pela manhã,
Eu vivia os meus sonhos, eles iam e vinham,
Ainda assim, eu continuo buscando, quando irei encontrar?
As estrelas se vão no céu ao amanhecer,
Eu me sinto uma bolha flutuando num rio,
Meus sonhos tiveram que morrer para que eu pudesse viver,
E agora eu espero acordar deste sonho.

Este verso é parte de uma música que fiz há uns anos atrás e se trata de uma questão que por vezes incomoda muitos aspirantes de Yoga ocidentais que entram no caminho espiritual.

Em nossa cultura ocidental, somos ensinados a ir em busca dos sonhos e seguir nossos corações. Entretanto, nas filosofias orientais, como o Budismo e Hinduísmo, aprendemos que a vida que levamos é um sonho, que os personagens que representamos não são reais e que o propósito é acordar do sonho do ego e despertar para a verdadeira realidade.

Durante muitos anos vivi confuso com esses pontos de vista aparentemente opostos até que me deparei com um palestra proferida pelo professor Jack Kornfield, um Budista americano, cujo tema era encontrar tanto o “vazio da nossa existência” quanto “nosso propósito na vida”.

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O “vazio da nossa existência” se refere ao ensinamento eterno do Oriente sobre o ego, que diz que a identificação com os pensamentos “eu e a minha vida” não é uma coisa permanente, é efémera e em constante mudança. É dito que sofremos porque não aceitamos que tudo no mundo é impermanente e tentamos nos apegar às coisas.

Por outro lado, não podemos negar que parte da nossa vida está conectada com o senso do “Eu” que a vive. Por acaso podemos negar essa sensação de Eu Sou?

Então, de um ponto de vista pragmático, nós temos algo para viver nesse tempo determinado, que é “nosso propósito na vida”. E a questão que desperta naqueles que buscam o caminho espiritual é: como posso viver minha vida da melhor maneira possível e ainda me manter consciente da natureza impermanente de todas as coisas? É exatamente neste ponto que a prática de Yoga entra em jogo.

Nos Yoga Sutras de Patanjali, ele afirma que a melhor maneira de alcançar a liberdade do sofrimento é por Isvara Pranidhana, o que significa devoção a Deus, ou entrega ao Divino, Poder Supremo, Energia Primordial ou Criador.

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Quando colocamos fé e devoção em um Poder Superior, reconhecemos que o ego é muito limitado em sua capacidade de entender a vida. O ego tem sua função – não estamos tentando aniquila-lo, mas sim, o aperfeiçoar e polir para que sirva de aliado ao invés de nos fazer sentir separado e isolado do resto do mundo.

Quando começamos a sentir como se estivéssemos sendo movidos por um Poder Superior e nos conectamos com esse lugar dentro de nossos corações, podemos confiar que nossas ações não estão sendo alimentadas pelo ego, mas sim, interligadas com a própria natureza da vida.

Portanto, a resposta para a pergunta sobre como acordar desse sonho e ao mesmo tempo viver nossos sonhos é: entregar-se, doar-se para essa energia Suprema de Criação. Quando nos conectamos com nossos profundos desejos do coração, entendemos que tudo faz parte dessa Divindade Suprema e não mais somos movidos pelo sonho do ego, um sonho de separação e isolamento, mas seguindo nossos corações – o que é a vontade do criador para nós.

Um dos livros mais influentes da minha vida foi “The Artists Way” de Julia Cameron onde ela aborda a questão de viver os sonhos em uma perspectiva não egóica. Ela explica que a vida é igual a criação. O Criador, Deus ou a Fonte está sempre criando e quando descobrimos que a criatividade que existe dentro de cada um de nós não é uma atuação do ego e sim a própria Energia Divina se expressando através de nós mesmos, então, profundamente entendemos que nossos sonhos e anseios vêm de uma fonte de energia Suprema e quando nos aproximamos dos nossos sonhos, nos aproximamos da nossa Divindade.

4Waking Up From a Dream, texto de Mark Robberds.
Publicado originalmente no www.centeredyoga.com.
Imagens de arquivo pessoal www.markrobberds.com

Mark Robberds é professor de Ashtanga Yoga Certificado pelo KPJAYI e estará em Florianópolis em Abril de 2017.

Uma semana completa de aulas e palestras, aproveite a oportunidade de aprofundar sua prática pelos olhos de um professor experiente, devoto e conhecedor do método.

Vagas limitadas!!

Maiores informações em breve.

Os Cinco Koshas

Os Cinco Koshas 1600 1065 Kaka

Somente o ser humano se questiona: quem sou eu? Um animal não se pergunta isso. Ele simplesmente vive e aceita aquele corpo, seus instintos e necessidades. Em algum ponto da história humana, começou esse olhar para si mesmo e sentir que existe algo mais do que o corpo, os pensamentos, os sentimentos. De onde terá vindo esse primeiro lampejo de consciência assomando na mente humana? Foi certamente um passo em frente na evolução, mas essa questão trouxe consigo alguma inquietação, uma necessidade de buscar algo mais. Por ser tão difícil de responder, nosso instinto foi procurar fora. Muitos sábios discorreram e se questionaram partindo dessa mesma pergunta, tentando definir o indefinível. Muitos artistas tentaram expressar através de tintas, palavras, esculturas e tantos outros meios, esse vazio existencial que tantas vezes não nos deixa dormir. Porque se não sei quem sou, não sei o que faço aqui.

Porque o curioso é: nos identificamos totalmente com corpo, mente e papéis sociais, com os heróis (ou vilões) de histórias pessoais que nós mesmos narramos. Mas ao mesmo tempo em que nos vamos apoiando nessa estrutura ilusória, algo dentro de nós nos diz que não é bem isso. Isso nos causa um senso interno de dualidade e divisão, como se estivéssemos constantemente escutando uma história mal contada, mas em que queremos forçosamente acreditar. E aí começamos a procurar, cada um de forma diferente. Assim muitos de nós chegamos ao Yoga, como forma de nos sentirmos “melhor”. Porque mesmo que seja por uma questão física ou emocional, no fundo o que queremos sempre é uma resposta para acabar com o sofrimento. Intuitivamente, sabemos que este não nos pertence, mas simplesmente não nos conseguimos livrar dele sem ajuda. Essa pergunta eterna que nos faz duvidar se estamos pisando em terreno firme ao acreditar em todas as nossas identificações, que de alguma forma a prática parece ajudar a dissipar, é que nos faz voltar dia após dia. Mesmo que as posturas nos pareçam loucas, a série impossível de decorar e a mente difícil de calar. Porque também em nós surge esse lampejo de consciência que nos diz que há algo mais além do mundo externo e material, vamos respirando, observando, limpando, desvendando as camadas que cobrem nosso verdadeiro Ser.

Mas esse caminho até nossa essência pode-se fazer de diferentes formas. Sri Ramana Maharshi enfatizava a meditação do tipo Vichara, interrogação, em que vamos nos perguntando: eu sou isto? E por exclusão vamos retirando aquilo que não somos. Esse processo pode ser chamado de neti neti, “nem isto, nem isto”. Não sou o meu corpo, não sou o meu pensamento, não sou o meu nome, não sou a minha profissão… E por aí fora, até chegarmos a algo que não deixe espaço para dúvidas. Mas para excluirmos algo e podermos afirmar com certeza que não somos aquilo, precisamos conhecê-lo. É isso que fazemos na nossa prática diária. Por isso passamos tanto tempo nos observando. Como está meu corpo hoje? Que sensação é essa? É dolorosa ou prazerosa? Como está minha mente? Porquê uns dias ela fica tranquila e me deixa praticar em paz e outras me faz esquecer tudo, me leva para mil lugares que eu não queria ir? Nosso verdadeiro Ser é ilimitado, então ele toma a forma que lhe dermos. Por isso precisamos ir purificando os vários invólucros e moldes para entender sua realidade ilusória. Precisamos observar e conhecer para saber como os transcender.

Partimos do corpo físico, mas podemos chegar a purificar até as camadas mais sutis. Estes diferentes corpos recebem o nome de Koshas e são cinco. São como vidros, em que se o primeiro está sujo de nenhuma forma conseguimos enxergar o último. Essa sujeira não é mais do que a soma de todas as cores que fomos dando as diferentes situações da vida e acumulando nos diferentes Koshas.

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Annamaya Kosha é o corpo físico. Anna significa comida, porque é disso que ele é composto. Todos os dias aquilo que comemos nutre nossa células, que se renovam a partir dessa nutrição. Pensando que este corpo é formado pelo que comemos e digerimos, se entende porque a alimentação é tão importante se queremos começar purificando os Koshas. Para além de predominantemente sátvica, ela deve ser adequada a nossa constituição, mas também à nossa capacidade de digeri-la. Ama, o conjunto de biotoxinas que está na origem de muitas doenças, se acumula quando comemos algo que não podemos digerir. Quando temos muito Ama, nos sentimos pesados, acordamos com dificuldade, as articulações doem. O interessante é que ao praticarmos todos os dias e observarmos o efeito dos alimentos que consumimos no dia anterior, acabamos por fazer escolhas e mudanças na nossa alimentação cada vez mais adequadas. E o melhor é que essas mudanças são normalmente graduais e suaves, porque acontecem de dentro para fora e não baseadas em opiniões exteriores, com as quais nossa razão pode até concordar, mas nossa vontade não. Ao mesmo tempo, quando esquentamos, torcemos, alongamos e massageamos nosso corpo com a prática, vamos removendo parte de Ama. Como equilíbrio gera equilíbrio, ao estarmos menos intoxicados, optamos por alimentos mais adequados.

A Primeira Série do Ashtanga Yoga recebe o nome de Yoga Chikitsa ou terapia porque atua primeiramente no corpo físico, entre outras coisas, aumentando o calor e a circulação sanguínea e linfática para todos os pontos do corpo, massageando áreas que antes ficavam inertes. No livro Yoga Mala, Sri K. Pattabhi Jois faz uma descrição detalhada sobre os benefícios de cada postura desta série. A ideia é deixar este corpo livre de doença e dor, para que o espaço que estas ocupariam seja utilizado para a concentração e meditação. Quando nosso corpo físico sente desconforto, toda nossa atenção é tomada por ele. Quando este está equilibrado e em harmonia, podemos então começar a purificar as camadas seguintes.

Pranamaya Kosha é basicamente o corpo energético. Composto por Prana, energia vital, é purificado através de Asana e Pranayama. Os seus canais, chamados nadis, recebem especial atenção na Segunda Série, em sânscrito, Nadi Shodhana, que significa exatamente purificação desses canais. O seu canal principal, o Sushumna, segue a coluna vertebral, tendo dois canais secundários que o acompanham: Ida (Lunar, esquerdo) e Pingala (Solar, direito). Os pontos de interseção desses dois canais são pontos especiais de energia, os conhecidos Chakras. Este corpo está entre o físico e o da mente, fazendo a ligação entre os dois, o que é facilmente observável numa prática de asanas. O Prana tem uma relação especial com a mente e para onde vai um segue o outro. Podemos ter certa região bloqueada, por exemplo sentindo resistência a que se abra. Se tentarmos forçar através da força física, provavelmente causaremos uma lesão. Mas quando levamos nossa atenção, sem julgamento, para aquela região, o Prana segue, podendo fazer a energia fluir. Isso pode trazer à tona diferentes emoções e por isso é comum para quem está começando as retroflexões profundas da Segunda Série ter manifestações diversas desse desbloqueio, como choro ou pesadelos. Como sempre, vale não racionalizar em excesso e se entregar ao que está acontecendo, lembrando que cada um é um indivíduo diferente e reagirá de forma diferente. Os Bandhas são mais um exemplo dessa ligação entre esses três corpos. Se ao inicio usamos muito a contração muscular para alcançar esses nós, aos poucos, colocando nossa atenção neles, podemos sentir como a força física vai diminuindo e se torna uma contração sutil, energética. Fechando o Mula Bandha, interrompemos o desperdício de Prana pelo Apana Vayu. Pelo Udhyana Bandha expandimos nossa capacidade torácica, fazendo com que o Prana seja distribuído por todo o corpo energético a partir da região do Anahata Chakra, o coração espiritual.

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O Manomaya Kosha é o corpo da mente, pelo qual em vez de sangue e linfa fluem pensamentos. Também aqui ficam guardados samskaras, impressões passadas que se foram acumulando por um denominador comum, influenciando tendências de comportamento, os vasanas. Porquê quando escutamos alguém falar de bolo de chocolate nos dá vontade de comê-lo? Porque essas três palavras nos lembram todas as vezes que comemos e foi prazeroso, reavivando esse samskaras. Ou não, pode ser que elas estejam associadas a uma memória de um bolo que nos deu dor de barriga e somente menciona-lo nos enjoa. Seja como for, nossa tendência automática é a de persistir no agradável e rejeitar o desagradável, segundo nossas impressões anteriores e prevalentes.

Tal como nosso corpo físico é composto por aquilo que conseguimos digerir, também o corpo mental vai sendo formado por aquilo que vamos digerindo, aquilo que vamos percebendo do mundo exterior e aquilo que vivemos nele, fazendo nosso próprio conjunto de memórias sensoriais, emocionais e intelectuais. E tal como existe Ama físico também existe Ama mental, pegajoso e difícil de eliminar, obstruindo os canais deste corpo, o fluxo do pensamento claro. Assim, a partir das impressões percebidas, como as digerimos e guardamos, são gerados padrões de comportamento. Um dos presentes recebidos ao praticar Yoga é a crescente consciência desses padrões, o primeiro passo para conseguirmos ultrapassá-los.

A purificação dos Koshas anteriores contribui grandemente para o alcançarmos. Bloqueios energéticos e físicos podem ser como muros que não nos deixam ver mais adiante, mesmo que queiramos muito. Além disso, na pratica de asanas e Pranayama, temos diversas oportunidades para observarmos como esses padrões surgem. A competição com o colega do lado, a frustração de não conseguir chegar no nosso ideal de um asana, o ego vibrando porque conseguimos chegar dois centímetros mais longe, a vontade de desistir no meio, são apenas algumas tendências que podem surgir. Na verdade surgem várias vezes durante nosso dia, mas nem sempre nos damos conta, porque passamos muitas vezes a correr. A ideia é que com atenção e amor consigamos cada vez mais eliminar os samskaras que nos causam sofrimento.

Vignamaya Kosha é o do intelecto, da inteligência sutil. Aqui se alojam os samskaras e o Karma mais profundos. Praticando, estamos despertando o poder do intelecto, sem a qual não podemos desvendar essa trama intricada de samskaras e vasanas. Só a luz de Buddhi pode iluminar as caixas empoeiradas onde guardamos impressões e tendências profundas, num canto escuro de nosso ser. Mas para que Buddhi se manifeste e prevaleça sobre a vontade do ego, seus apegos e aversões, é necessário que Sattva domine sobre a mente. Por isso são tão importantes as ações de purificação dos Koshas anteriores, para criar o espaço e a luz necessárias para termos Viveka, discernimento.

O último Kosha, Anandamaya Kosha, é o chamado corpo causal, a alma que causa a individualidade especifica com que cada um de nós vem nesse mundo. Sendo o último, o mais sutil, é o que está mais perto de Purusa, em direto contato com o Absoluto. Dá origem aos outros Koshas e o último a ser dissolvido quando se morre. Ananda pode ser traduzido como bem-aventurança, um estado de felicidade, paz e tranquilidade, que seria a matéria que compõem este corpo. Experienciar esse estado, um tipo de Samadhi, só é possível quando os Koshas anteriores estão purificados.

No fundo, este é um processo de Kriya Yoga tal como descrito no primeiro sutra do Sadhana Padha, o segundo Capítulo dos Yoga Sutras, por Patanjali. Kriya significa ação e envolve Tapas, Svadhyaya e Ishvara Pranidhana. Com Tapas, o calor da autodisciplina, muitas vezes traduzido como austeridade, não só fazemos o sangue circular mais fortemente, limpando nosso corpo físico de maus hábitos, como queimamos as sementes dos samskaras para que não germinem mais. Mas essa austeridade não é gratuita, não vem para nos causar dano ou reprimir. Muito pelo contrário, é uma autodisciplina que nos ajuda a seguirmos mais facilmente naquele caminho que escolhemos. Por exemplo, queixamo-nos que não temos tempo para praticar, que queremos acordar cedo, aproveitar mais o dia, mas não conseguimos. Tentamos uma vez mas na manhã seguinte já deixamos nossa tendência de acordar tarde por anos ditar. No terceiro dia nos arrependemos e voltamos a colocar o despertador para cedo, para no quarto esquecer da decisão na hora que a preguiça fala mais alto. E a verdade é que cada vez que cedemos faz com que na seguinte custe mais ainda. Mas o que por vezes não vemos é que mais do que a hora que acordamos ou não, o que causa o sofrimento é essa indecisão, esse constante alternar entre nossos valores e nossos condicionamentos. Usando o fervor de Tapas, podemos nos disciplinar para acordar mais cedo por um tempo, até que um belo dia descubramos que isso não nos exige mais esforço, passando a acontecer naturalmente. Claro que isso não vem sozinho. Ter os Koshas livres de Ama físico, mental e energético é fundamental para conseguirmos permanecer firmes em nossas escolhas. No fundo, a vida é feita de ciclos, de ações e consequências que quanto mais estão em sintonia e de acordo com um propósito, mais força nos dão para irmos em direção a esse propósito.

Svadhyaya se trata exatamente de auto estudo, auto-observação e conhecimento. Entender como nossos corpos funcionam serve para saber como manejá-los, como transformá-los, como não deixar que nos dominem. Como dito antes, serve também para entendermos o que não somos. Se me apego a ideia que sou aquela pessoa que acorda tarde, se eu mesmo coloco esse limite estanque, dificilmente só com Tapas sairei da cama. Mas se entendo que não sou essa preguiça, fica mais fácil agir de acordo com os valores em que realmente acredito. Svadhyaya também é o estudo de escrituras e livros sagrados, o que não deixa de ser um estudo sobre nós mesmos, ou não fossem estes universais.

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Com Ishvara Pranidhana, temos a oportunidade de purificar todos os corpos, do mais grosseiro ao mais sutil. Porque no fundo, só sofremos quando não nos entregamos ao fato que existe uma lei maior, porque nosso ego sempre espera algo em troca, mesmo que tenha propósitos aparentemente superiores. Se eu vier todos os dias vou conseguir fazer drop-back sozinho? Se eu fizer Pranayama vou ter uma mente mais calma? Se eu praticar por anos vou viver mais anos? Se eu meditar vou me iluminar? Dificilmente fazemos algo sem nos apegarmos ao resultado. E esse resultado não pode ser qualquer um, tem que ser o que imaginámos, segundo nossa visão limitada da coisa. Exatamente porque avidya nos domina, a ignorância sobre quem realmente somos. Então nos apegamos a tal estrutura ilusória que falávamos no inicio. Se pudermos entregar tudo a Ishvara entendendo que não somos mais do que parte desse Todo, purificamos nossas ações, nossos corpos, nossos samskaras mais profundos.

Assim, dizemos que Yoga é um caminho de purificação, camada por camada. Mas purificar não é lavar. Qual a melhor maneira de fazê-lo? Entregando-o ao fogo. Ao contrário de algo que lavamos e mantemos intacto, quando o fogo toca em algo o liquefaz, modifica sua forma. Não sabemos como aquilo que entregamos ao fogo divino vai sair, não queremos oferecer por medo da perda, por apego. Mas se nosso desejo por liberação é intenso, estamos disposto a deixar que todos nossos Koshas sejam transformados pela chama da Consciência. Isso só pode acontecer quando confiamos plenamente no Universo, quando sabemos que o que tem de ser será, independentemente de nossa vontade. Por isso que, mais que tudo, o Yoga é então, um caminho de entrega e aceitação.

Texto de Olga Rodrigues
Imagens de Karim Rojas, Marza Tozo e Kike Krueger

Yoga e as Emoções

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Falamos de controlar a mente e os pensamentos com o Yoga, mas, e as emoções, onde se encaixam? Abrir o coração significa deixar que elas corram livre ou elas são apenas uma expressão dessa mente e devem ser reduzidas? Normalmente, relacionamos pensamentos com razão e lógica mas, a verdade é que, emoções são também vrttis, algo que faz a mente oscilar. Dificilmente algum pensamento lógico nos levará a extremos tão diferentes como um acesso de raiva ou um pulo de alegria. E com certeza, nenhum nos dominará tanto que passemos a funcionar no automático, reagindo, muitas vezes contra nossa vontade ou contra aquilo que acreditamos ser o melhor, como tantas vezes acontece quando somos levados pelo sentimento. Mas intuitivamente, parece que sentimos que há algo mais ali, nessas mil emoções pelas quais passamos todos os dias. Existe algo nessas lágrimas que nos libera, algo nessa raiva que nos ensina, algo nessa gargalhada que nos parece levar mais perto do estado de felicidade. Inclusive, em plena prática de Asanas, muitas vezes, elas surgem nem sabemos muito bem de onde nem porquê. O que é curioso é que quanto mais praticamos Yoga, mais em contato estamos com nossas emoções, e ao mesmo tempo também, mais nos liberamos de seus condicionamentos.

 

Esse aparente paradoxo se poderia explicar com uma palavra: autoconhecimento. Afinal, praticamos Yoga porque queremos chegar mais perto de quem realmente somos, praticando a auto-observação como forma de separarmos o trigo do joio, aquilo que nos pertence daquilo que nos foi imposto, seja pelos outros seja por nós mesmos. Trazemos á luz àquilo que antes estava escondido, para com a espada afiada do discernimento cortar o que não nos serve mais. No Yoga, não há espaço para auto ilusões ou negação. Nosso ego e sua sede insaciável de auto satisfação podem até fazer passar por positivo algo que nosso intelecto sabe que não nos faz bem, seja uma cervejinha, uma comida pouco saudável, um filme violento ou mesmo uma companhia tóxica. Mas no dia seguinte, quando nos enfrentamos no tapetinho, o corpo dói, a mente foge e não há mais como negar o óbvio.  E se estamos ali, se conscientemente escolhemos dedicar um momento de nosso dia corrido para nos observarmos, é porque existe uma semente dentro de nós que nos faz querer evoluir. É essa semente que faz com que aos poucos, mudanças aconteçam na nossa vida. Idealmente, nossa tendência para uma expansão da nossa espiritualidade inata acaba por ganhar e talvez cheguemos num ponto que nem lembramos mais desses hábitos que um dia achamos que nunca largaríamos.

1Por isso se diz que o Yoga purifica. Não é uma limpeza no sentido higienista, de deixar tudo esterilizado, para que nada possa crescer. Mas de tirar o que é impuro, o que é rajásico ou tamásico, para que exatamente nossas tendências sátvicas possam crescer com mais força e até se multiplicar. Porque há uma diferença entre vrttis positivos e negativos, como os kleshas (ignorância de quem somos, identidade, apegos, aversões e medo da morte), assim como de emoções negativas ou positivas.  Essa diferença é a direção para a qual nos levam. O que estamos cultivando hoje para colher amanhã?

 

Entretanto, o difícil com as emoções é muitas vezes o quanto elas nos tocam fundo, o quanto rejeitamos umas e nos apegamos a outras. Começamos a praticar e precisamos lidar com algumas partes de nós mesmos que não queríamos ver. Mesmo que ao inicio Asanas e Pranayamas nos pareçam algo extremamente físico ou técnico, o fato é que diferentes aspetos psico-energéticos e também emocionais vão sendo trabalhados.

Porque a verdade é que quase todos nós chegamos a nossa primeira aula de Yoga trazendo no corpo toda a carga emocional de anos, já que raramente temos oportunidade de liberá-la. Pelo contrário, somos muitas vezes ensinados ao longo da vida a tapar o que estamos sentindo, porque não é apropriado expressar naquele momento, ou porque nós mesmos queremos evitar aquela emoção dolorosa. Mesmo quando crianças, nossas manifestações de tristeza e até de alegria, ira ou mágoa são muitas vezes reprimidas. Aos poucos, vamos aprendendo a esconder nossos sentimentos, cada um criando suas estratégias desesperadas, como racionalizar demais as situações, negar os problemas ou procurar estímulos que de alguma forma tapem aquilo que não queremos sentir. Em qualquer comportamento compulsivo, seja beber, comer, comprar, trabalhar ou outro, a tentativa é sempre a de inundar a mente com outras sensações. Custe o que custar, não podemos parar nunca, pois isso nos faria olhar para o que dói, para o que não é bonito, para o que o nosso ego não gosta de chamar de seu.

 

E o que acontece com todas essas emoções que negamos, tapamos ou racionalizamos? Elas não vão embora porque simplesmente não há mais espaço para elas. Pelo contrário, tentam se expressar de outra forma. Acumulam-se em algum lugar e bloqueiam a passagem de energia até que nos demos conta de que algo está errado. Por isso vamos fechando o peito e rodando os ombros para a frente como quem defende o coração dos ataques externos. Por isso vamos endurecendo nosso quadril, não permitindo dar passos em frente. Ou por isso nosso joelho dói quando temos que nos ajoelhar e reconhecer nossa pequenez perante o grande esquema da vida. Por isso também nossas costas acumulam tanta tensão, numa tentativa de colocar longe da vista, bem lá para trás, aquilo com que não queremos lidar no momento.  E esse são apenas pequenos exemplos.

3O que acontece quando começamos a praticar Yoga? Levamos calor, energia, movimento e Prana para lugares de nosso corpo que estavam bloqueados ou adormecidos. Como temos essa semente de expansão espiritual dentro de nós, ou não estaríamos ali, naturalmente vamos percebendo que algo não flui. Pode ser até que ao inicio resistamos, que nossa mente perceba isso como dor (não invalidando as dores da prática, as quais sempre devemos dar atenção), que esse processo dure mais tempo do que gostaríamos e que ao longo dele diferentes emoções surjam, como mágoa ou raiva. Pode ser até que essas sejam tão fortes que nosso instinto é correr e não voltar mais. Mas devemos lembrar que a prática deve ser sempre sátvica, ou seja, nos deixar com a mente mais clara e tranquila do que antes. Se terminamos nos sentindo irritados e impacientes ou pesados e apáticos, precisamos verificar o que está acontecendo, apenas através da observação, já nos permitimos dissolver muito do que está internamente acontecendo. Porque aonde vai a mente vai o Prana. Então aquele bloqueio se enche de energia vital e começa a se desfazer.

 

Se com os Asanas temos a oportunidade de dissolver nossa carapaça emocional criada por anos, com os Yamas e Niyamas podemos usar essa abertura criada para interagir com nós mesmos e com o mundo de uma forma diferente, que só gerará mais luz, honestidade e generosidade. Removendo esses bloqueios, fica também muito mais fácil começar a queimar os samskaras, essas impressões acumuladas que nos levam a agir de forma condicionada. É como se chegássemos numa interseção e tivéssemos uma trilha aberta, que já fizemos várias vezes e outra menos aberta, pela qual raramente fomos. Naturalmente, muitas vezes sem pensar, enveredamos por aquela que conhecemos melhor, mesmo que nos tenha levado a onde não queríamos. Essa trilha aparentemente mais confortável é o samskara. Seu condicionamento pode ser muito forte e difícil de quebrar. Ás vezes podemos até sentir que com o Yoga estamos indo contra a corrente ou o que é normal. Mas precisamos pensar: Onde queremos chegar? Na liberação?  Ser livre não é só fazer o que se quer, não é conseguir sempre ver suas expectativas satisfeitas, mas sim estar em paz com o que quer que aconteça. É estar perante as mil interseções da vida e saber que se está escolhendo a trilha que está mais adequada com o nosso Dharma, com o nosso destino, guiados por Buddhi, e não por nossos Ragas e Dvesas, apegos e aversões, saber que estamos agindo e não reagindo. E ainda assim, seguir nesse caminho com paz no coração, feliz com seu destino seja ele o que esperámos ou não.

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Mas isso, realmente não é nada fácil. Até porque além de nossos próprios condicionamentos, temos que lidar com os condicionantes externos. Damos por nós pensando que seria muito menos trabalhoso seguir Yamas e Niyamas, sair dos padrões, se vivêssemos isolados,  meditando no alto da montanha. Se não tivéssemos contas para pagar, tarefas para fazer, satisfações a dar. Como viver num mundo que muitas vezes não é nada justo, em que nos relacionamos com pessoas diferentes todo o dia, que trazem seus próprios samskaras sobre os quais não temos nenhuma responsabilidade?

 

Patanjali escreveu os Yoga Sutras num passado distante, em que a sociedade com certeza funcionava de um modo distinto. Mas ainda assim, no sutra 33 do primeiro capitulo, ele dá quatro chaves cruciais para nos relacionarmos com os outros, de forma a podermos atingir ciita-prasadanam, a purificação e tranquilização dessa consciência, que é afinal mente e coração.
São elas: amistosidade perante aqueles que estão felizes, compaixão pelos que estão tristes, alegria pelos virtuosos e equanimidade perante os não virtuosos. Parece simples, mas quantas vezes sentimos inveja pelas qualidades ou conquistas dos outros? Ou quantas vezes sentimos quase um prazer em julgar ou rejeitar os que são viciosos? O que não vemos é que esses sentimentos, ainda que venham naturalmente, acabam por fazer mal sobretudo a nós mesmos. Vão nos corroendo, porque sabemos que no fundo não estão de acordo com o que acreditamos. Se conseguimos ter sempre presentes essas quatro chaves, nossas relações ficam mais leves, mais simples e essa é também uma forma de purificarmos nossas emoções.
2No fundo, quando se trata de emoções, torna-se pertinente a pergunta do início: o que estamos cultivando hoje para colher amanhã? Porque as emoções, exatamente por esse seu caráter mais profundo, por serem tão parte de nós, são um dos aspetos da mente mais difícil de se lidar. Mas quando escolhemos o caminho da evolução espiritual,  escolhemos também dissolver nossos bloqueios e quebrar nossos padrões, gerando em nós uma nova atitude, que nos permitirá criar relações não mais baseadas em expectativas, apegos e  carências, mas sim na generosidade e honestidade. Por seu lado, isso permite que emoções luminosas e verdadeiras predominem, num circulo virtuoso de harmonia.
A verdade é que se prepararmos bem o terreno hoje, plantamos as sementes certas e regarmos com Amor, não podemos esperar mais do que belas flores e saborosos frutos.
Texto de Olga Rodrigues
Imagens de Karim Rojas no Intensivo de Ashtanga Yoga com Guy Donahaye em Floripa.

Samyama: Dharana, Dhyana e Samadhi

Samyama: Dharana, Dhyana e Samadhi 1280 854 Kaka

Podemos ver o Ashtanga Yoga como um caminho de oito passos, com um final onde queremos chegar. Mas que destino é esse, se não a verdadeira sabedoria, conhecer quem somos realmente? Será que estamos indo realmente a algum lugar? Ou apenas descobrindo, no sentido de retirar aquilo que cobre nossa essência? Como se, através do discernimento adquirido pela prática, fossemos removendo as diferentes roupagens que vestem nosso verdadeiro Ser.  É um processo de limpeza, aprimoramento e entendimento dos diferentes aspetos da nossa vida. Começamos pelos externos, como relações com o mundo pelos Yamas, com nós mesmos através dos Niyamas, com nosso corpo físico pelos Asanas, respiração por Pranayama e sentidos por Pratyahara. Até que chegamos á parte mais interna dessa prática, chamada de Samyama e que inclui Dharana, Dhyana e Samadhi. Esses são três aspetos da meditação, como três fios numa trança, em que não conseguimos falar onde exatamente começa um ou outro. Se os separamos é sobretudo para um melhor entendimento.Hoje em dia, a palavra meditação é muito usada, mas o que significa realmente? Sentar em silêncio, com os olhos fechados? Sem nenhum tipo de preparação, esse é o cenário ideal para que comece um diálogo interno, uma batalha sem cessar entre nossa vontade de meditar e nossos pensamentos sem controle. Exatamente por isso, precisamos dos cinco Angas anteriores, para purificar nossas ações, corpo e mente. Claro que sempre é valido sentar e observar nossa mente, nem que seja para nos darmos conta de como esta é tumultuada e de quanto trabalho ainda temos pela frente se realmente a queremos acalmar.  Mas Samyama não é algo que simplesmente possamos sentar e fazer porque o decidimos. Não é uma técnica, mas algo que precisa acontecer naturalmente. Uma melhor tradução poderia ser integração, união. Mas do quê com quê? De nossa identidade pessoal com o objeto escolhido, do eu individual com o Eu absoluto. Parece muito abstrato, mas fica mais claro quando compreendemos suas três partes.

Dharana, ou concentração, é feita quando conseguimos focar num objeto, mas ainda de forma intermitente e variável. Temos percepção do que se passa ao nosso redor e afloram pensamentos que requerem certo esforço para serem afastados, ás vezes até sobre diferentes aspetos do objeto no qual nos concentramos.  Surge quando algo prende a nossa atenção, como quando aprendemos a tocar um instrumento musical. Na prática de Asanas é muitas vezes atingido, quando estamos totalmente concentrados nos diferentes aspetos da postura ou da respiração.

Dhyana, também traduzido como foco contínuo, acontece naturalmente quando a concentração se alonga e os pensamentos deixam de aparecer. É muitas vezes comparado a um fluxo de óleo, que corre sem interferências.  Também pode surgir em plena prática de Asanas, quando nos tornamos um com a postura. Pode reverter para Dharana, quando, por exemplo, nossa atenção vai para o colega do lado.

Samadhi é um estado de total absorção pelo objeto, em que perdemos nossa identidade pessoal. Inclusive, Patanjali diz que nele, aquilo que é compreendido, o objeto de compreensão e aquele que compreende se tornam um. Tal como Dharana e Dhyana, pode acontecer com diferentes objetos e não somente quando se pratica Yoga. Quando nos perdemos olhando um pôr-do-sol magnifico, quando temos essa sensação de total comunhão com outra pessoa, quando sentimos que deixamos de saber quem somos, num trance hipnótico. A verdade é que passamos por diferentes samadhis na nossa vida, mas são breves, efêmeros e muitas vezes com qualidades baixas, como um estado de consciência alterado induzido por drogas. Para o praticante de Yoga, interessa o Samadhi que traz sabedoria, clareza e luz, característicos de Sattva. Como só semelhante pode gerar semelhante, tal é impossível se usarmos objetos rajásicos ou tamásicos. 

Por isso, essa ideia de que o objetivo do Yoga é parar a mente pode confundir muito ao início. Para quê tantas horas de prática, tanto estudo, tanta dedicação para algo que se parece conseguir quando se está absorto em algo, quando se toma um entorpecente? Sim, Yoga é “citta vrtti nirodhah”, a cessação das flutuações da mente, mas não pela mera conquista de dominar a mente ou por chegar a conseguir não pensar em nada, só por si. Tornar a mente calma como um lago em dias sem vento não é um fim em si mesmo, embora seja realmente difícil de alcançar. O que nos importa é o reflexo da luz do Absoluto nesse espelho, que as ondas dos vrttis não nos permitem enxergar normalmente. Trata-se de procurar Rtambhara Prajna, a sabedoria luminosa, pura e verdadeira, que Patanjali diz que vai muito para além do conhecimento obtido em livros e que inicia uma nova vida, em que os samskaras antigos (impressões) são deixados para trás e novos são evitados. Ou seja, a sabedoria que nos permite romper com padrões de comportamento, que muitas vezes nos levam a agir automaticamente, sem benefícios para ninguém. Por isso esse Samadhi sátvico só pode ser atingido por Abhyasa e Vairagya, prática e renúncia. Sem atalhos, sem apegos ou distrações.

Patanjali distingue quatro estágios desse tipo de Samadhi alcançado por Abhyasa e Vairagya. Vitarka é o Samadhi que vem do estudo analítico de um objeto, como pode ser uma imagem, um mantra ou mesmo a respiração. Em Vichara a contemplação é mais sutil, podendo partir desse mesmo objeto mas focando na sua essência. Daí se passa para Ananda Samadhi, em que se é absorvido por um estado de bem-aventurança, felicidade ou jubilo, que advém da total dissolução até dos aspetos mais sutis contemplados em Vichara. Em Asmita, podemos por fim experienciar nossa verdadeira identidade, nosso Ser. 

Mas até aqui ainda falamos de uma conquista da mente através da mente, o chamado Sabija Samadhi. Sabija significa com semente, que nesse caso é um objeto de foco. Segundo Patanjali, com confiança e vigor, o praticante pode alcançar o estágio máximo: Nirbija Samadhi. Neste Samadhi sem semente, sem objeto de foco, toda a matéria, Prakritti e consequentemente todos os gunas, inclusive Sattva, são transcendidos. É extremamente complexo falar de Nirbija Samadhi, porque é tentar explicar e compreender através do intelecto algo que vai muito para além dele. Nossa identificação com a mente é tão forte que nos ultrapassa conceber um estado em que suas formas de expressão, os pensamentos, estejam ausentes. 

Blog 25 (3)Mas Patanjali dá uma esperança. Ele diz que Samadhi está mais facilmente ao alcance daqueles que são extremamente vigorosos e intensos na prática. Isso não significa uma prática de Asanas ou Pranayama avançados, mas uma total integração de todos os Angas, inclusive Yamas e Niyamas. Pouco vale praticar três horas de asanas belos e complexos se não fazemos das vinte e quatro horas do dia, de toda nossa vida e seus múltiplos aspetos, uma prática de Yoga. Até porque o significado de Abhyasa é uma prática constante e sem interrupções, ou seja, que de nenhuma forma pode ser algo que limitemos a um determinado espaço ou tempo.  Relações familiares, amorosas ou de amizade, desafios e obstáculos diários a nossa autodisciplina e valores, a forma como cuidamos, nutrimos e respeitamos nosso corpo e mente, como interagimos com o ambiente em que estamos, tudo são oportunidades para chegarmos mais perto de nossa essência, usando a pureza da mente que queremos cultivar com o Yoga.  

Patanjali diz ainda: Ou, podemo-nos entregar a Ishvara. O uso da palavra “ou” (“va”, em sânscrito) já nos traz muito do sentido desse sutra. Porque afinal, se conseguíssemos apenas nos render á vida tal como ela é, sem querer constantemente controla-la, se pudéssemos chegar num tal estado de aceitação que nosso ego não quisesse mais ditar como tem que ser o mundo, se tornaria incrivelmente simples acalmar chitta e enxergar nosso verdadeiro Eu. Se estivéssemos entregues a Ishvara, aquele que é livre de limitações, iríamos para além de nossa própria limitação, das nossas fronteiras imaginárias, criadas somente por nossa mente. Para preencher um vazio existencial que nos assusta, vamos nos identificando com as diferentes projeções dessa mente, tentando compor uma identidade através daquilo que nos atrai ou repulsa, num jogo constante de “isto sou eu”, “isto não sou eu”. Construída essa identidade, nos apegamos a ela como se nossa vida dependesse disso, seguindo pelos mesmos caminhos uma e outra vez, mesmo quando sabemos que no final só nos causam sofrimento. Julgamos que estamos controlando, exigindo que a realidade se conforme à nossa vontade, mas na verdade somos nós os dominados. É o apego a essas falsas identificações que não nos permite simplesmente entregar os resultados de nossas ações a Ishvara. E também por ele, acabamos por precisar de toda essa prática, expressa nos cinco primeiros Angas. Como se fossemos crianças perdidas, a prática de Yoga nos leva pela mão, trazendo-nos constantemente para nosso rumo, lembrando-nos que não há porque causar dano, mentir ou roubar o outro, descuidar do nosso corpo e mente, se afinal tudo é apenas uma expressão de Ishvara.

 Isso nos leva de novo a Dharana, Dhyana e Samadhi. Porque precisamos inicialmente de uma semente, um objeto de foco, se a ideia é diluir nossa identidade em algo maior? Exatamente porque estamos tão identificados com nossas próprias limitações que se torna inconcebível percebermos nossa infinitude. Ao contemplarmos um objeto externo, concentrarmos toda nossa atenção nele até transcendermos seus aspetos mais grosseiros e depois até mesmo os mais sutis, chegamos na sua essência. Percebendo então o que realmente É, reconhecemos que também o somos. Dissolve-se assim nossa falsa ideia de separação e chegamos à Unidade. Porém, palavras podem-se tornar obstáculos quando queremos definir o indescritível. É querer mais uma vez delimitar o infinito. Afinal, Yoga é experiência, a teoria é apenas uma base para melhor fundamentarmos nossas práticas em nossas vidas. Saber mais sobre Samadhi pode nos ajudar a desmistificar esse estado mas não nos leva lá. O caminho se faz caminhando, com Abhyasa, mas também deixando para trás o que nos pesa e não serve mais, com Vairagya. Ao mesmo tempo precisamos cultivar Ishvara Pranidhana, fazendo de cada passo uma oportunidade de aprender a entrega e aceitação.

Texto de Olga Rodrigues

Imagens de Taeko

Os Sabores segundo o Ayurveda

Os Sabores segundo o Ayurveda 1600 1066 Kaka
Se alimentar é algo que vai muito além de satisfazer uma necessidade fisiológica. A forma como o fazemos influencia diretamente como nos sentimos, tanto a nível físico como mental. Por isso, á medida que vamos nos estabelecendo na prática do Yoga, vamos aos poucos modificando nossa alimentação. 
Cada vez que comemos, sabores, texturas, cores e temperaturas se combinam e interagem, resultando em experiências distintas. Uma refeição é como uma música de orquestra, em que cada alimento toca sua parte, expressa diferentes timbres, atinge variados tons. Os sabores são uma parte importante dessa composição e para o Ayurveda, a sua importância vai muito além de nos agradarem ou não.
Quando nos alimentamos fazemos uma troca energética com a Natureza e seus cincos elementos: Éter, Ar, Fogo, Água e Terra. O sabor que sentimos não é mais do que a forma como percebemos a proporção de cada um através do paladar. Naturalmente, se um elemento está em maior quantidade no que comemos, também aumentará em nós. 
O sabor doce, por exemplo, traz a energia da Terra e da Água. Não por acaso, as crianças, que precisam exatamente desses elementos para criar estrutura e crescer, são tão atraídos por ele, ou não fosse o sabor do leite materno. Ao comermos muito doce, aumentamos Terra e Água em nós. Por isso aumenta Kapha e nos faz ganhar peso. Também por essa razão, quando nos sentimos muito agitados, recorremos ao doce para nos dar essa sensação de conforto e aterramento. O problema é que num tipo de vida em que corremos e nos preocupamos demais, acabamos por ter uma necessidade excessiva do sabor doce, assim como do salgado. Compondo nossas refeições com base apenas nesses dois sabores, vamos anulando nossa sensibilidade gustativa, procurando que estes sejam cada vez mais fortes. 
4Entretanto, há uma diferença muito grande entre um doce de boa qualidade como o das frutas e o de má qualidade, como o do açúcar e farinhas refinadas. Quando optamos por estes últimos, os efeitos são naturalmente negativos, como apego e ciúmes. Ao mesmo tempo, nossa necessidade de aterramento não é devidamente satisfeita, pelo que tendemos a buscar saciá-la com mais doce, iniciando um ciclo vicioso em que nutrição é substituída por carência. 
Ou seja, cada um dos sabores tem seus efeitos positivos no corpo físico e mental, assim como negativos, quando consumido em excesso. Por isso, no Ayurveda se acredita que a refeição deve ser composta pelos cinco sabores: Doce, Salgado, Ácido, Amargo, Adstringente. Falemos um pouco mais de cada um:
  • Doce: Como dito antes, esse sabor é composto por Terra e Água, sendo frio, pesado e úmido. Aumenta Kapha e reduz Pitta e Vata. Nutre, aterra, dá longevidade e força, constrói tecidos e aumenta Ojas, o néctar que dá imunidade e resistência física e mental. É calmante, promovendo contentamento e conforto. Em excesso, causa obesidade, letargia, diminui a capacidade de digestão e abranda o metabolismo, além de causar doenças Kapha. O doce de boa qualidade está mais presente do que imaginamos, na maior parte das frutas, vegetais como a cenoura e beterraba, grãos e feijões,  adoçantes como açúcar mascavo, melado e mel. Esse é o tipo de doce que devemos incluir na nossa alimentação, tornando nosso paladar cada vez mais sensível às diferentes sutilezas dos sabores. Por aumentar naturalmente Sattva, o Guna que ajuda a tornar nossa mente mais clara e tranquila, este sabor apoia a prática do Yoga. Já o doce excessivamente forte, como o do açúcar e farinhas refinadas, dá uma sensação de energia rápida, mas que logo cai, criando uma adição. Também embota mente e corpo, aumentando Tamas, a energia da inércia e da escuridão.
  • Salgado: composto por Terra e Fogo, tende a agravar Kapha e Pitta, reduzindo Vata. É quente e úmido. Aterra e acalma. Estimula a digestão, realça o sabor dos alimentos, mantém equilíbrio eletrolítico, suaviza tecidos e é um laxativo suave. Quando digerido se transforma em doce, sendo essa mais uma razão para não reduzirmos nossa alimentação a esses dois sabores. Em excesso, causa retenção de líquidos, problemas de pele e rugas.  Agrava Pitta e obstrui os sentidos, gerando apatia e impaciência. Está presente sobretudo no sal, porém devemos evitar o refinado e preferir marinho grosso ou sal de rocha. Este também foi um dia sal marinho, mas ficou preso nas rochas quando o mar baixou e é mais equilibrado por esquentar menos. Outros alimentos com sabor salgado são as algas marinhas e a pasta de Missô.
  • Ácido: este é um sabor quente, úmido e leve, que aumenta sobretudo Pitta mas também Kapha, reduzindo Vata. Traz consigo Terra e Água. É forte e deve ser usado em pouca quantidade. Estimula o apetite, a digestão e a eliminação. Revigora, dá força e desperta a mente. Em excesso, aumenta a sede e agrava Pitta o que origina desequilíbrios naturais desse Dosha, como inflamações, hiperacidez, sensações de queimação e raiva. É encontrado em frutas cítricas, sobretudo o limão, vinagre e comidas fermentadas, como iogurte.
  • Picante: muito quente, é o sabor que mais aumenta Pitta. É composto por Fogo e Ar, agravando também Vata por sua qualidade seca. Ao esquentar e secar é o mais eficaz para reduzir Kapha. Fortalece o Agni, o fogo digestivo, aumentando o apetite e estimulando a digestão, limpa o muco, estimula a circulação, movimenta coágulos e trombos e dissolve obstruções.  Em excesso, diminui a força, aumenta sensações de ardor, queimação e sede. No geral, causa problemas de ordem Pitta, como inflamações. A nível mental pode causar agitação e irritabilidade.  Devemos preferir os picantes mais suaves como o da canela, cravo, noz moscada e gengibre. Picantes fortes como o da pimenta malagueta ou do alho, não só tendem a criar desequilíbrio como aumentam Rajas, o Guna caracterizado pelo movimento e mudança, que na mente cria ansiedade e egocentrismo.
  • Amargo: este é um sabor que normalmente não é muito usado, tido muitas vezes como desagradável. Porém, como todos, tem seus benefícios e deve ser usado com moderação, já que é muito intenso. Composto por Ar e Éter, é frio e seco e agrava naturalmente Vata, reduzindo Pitta e Kapha. Desintoxica, depura e reduz, sendo antibacteriano, baixando a febre e o ardor.  Limpa o paladar e os sentidos. Em excesso, seca demasiado, causando desnutrição dos tecidos, tirando força e originando condições de desequilíbrio de Vata, como constipação, secura excessiva e doenças degenerativas. Também pode levar a depressão e mágoa. É encontrado em folhas verdes como a couve e outros vegetais como alcachofras e jiló. 
  • Adstringente: talvez o sabor menos conhecido e usado, é o que dá a sensação de travar a língua. Isso porque é composto por Ar e Terra, sendo frio, seco e leve. Aumenta Vata, reduz Pitta e Kapha.  Dá firmeza, trata a diarreia, reduz secreções, absorve umidade. Em excesso desidrata, escurece a pele, causa retenção de outras eliminações como no caso de constipação, e outras doenças Vata como as de ordem neurológica. Bananas verdes e romãs são um exemplo de frutas com este sabor.

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Ao inicio pode parecer um pouco abstrata a ligação entre o sabor, os elementos e seus efeitos. Porém, basta pensarmos: quem nunca sentiu o fogo subindo ao comer algo extremamente picante, o nariz desentupindo e os olhos lacrimejando? A secura extrema de uma banana verde? O conforto de um doce? Até a relação sabores-emoções é tão forte e presente nas nossas vidas que faz parte das nossas expressões. Dizemos que certas palavras ou atos são doces, que o preço é salgado, que o momento foi picante, que aquela pessoa amargou. 
 
E a verdade é que quanto mais, através de práticas como o Yoga, desenvolvemos nossa capacidade de auto-observação, mais aprendemos sobre a relação entre o que comemos e como nos sentimos. Seja percebendo que sabores nosso corpo parece pedir, qual deles melhor parece traduzir como estamos no momento, ou usando-os para reduzir algum desequilíbrio, saber mais sobre os sabores se torna uma ótima ferramenta de autoconhecimento. Assim, tanto no prato quanto na vida, ao trazermos atenção para o momento presente, vamos refinando nossa sensibilidade para as diversas tonalidades que antes passavam despercebidas, nos aventuramos a explorar sabores antes desconhecidos e tendemos cada vez mais a fazer escolhas que naturalmente nos apoiam na nossa busca por clareza e paz.
 
 
Texto de Olga Rodrigues
 Fotos de Karim Rojas

Ashtanga Yoga Mantra

Ashtanga Yoga Mantra 1280 853 Kaka

Não importa se estamos num Shala cheio ou em casa sozinhos. Se nosso dia anterior foi agitado e ainda nos sentimos inquietos. Se nosso corpo reclama de desconforto. Se estamos num momento difícil de nossas vidas. Se nossa mente não para um minuto, enumerando as coisas lá fora em que precisamos pensar. Cada um de nós tem seu universo pessoal, com suas relações, preocupações e questões, não é fácil simplesmente pôr tudo isso de lado só porque vamos praticar. Mas no momento em que ficamos na frente de nosso tapetinho em Samastithi, mãos juntas em frente ao peito, olhos fechados, pés firmes no chão, coluna reta, polos feminino e masculino, lado lunar e lado solar unidos, em que sincronizamos nossa respiração e começamos o mantra inicial, algo de sagrado acontece. Á medida que o som nos vai preenchendo, os pensamentos e preocupações deixam de ter espaço para se manifestarem, nosso corpo vibra, nossa respiração se acalma e a mente se volta para dentro.

Ao início, as palavras parecem impossíveis de pronunciar e decorar, mas aos poucos cada uma delas vai se tornando algo tão nosso como uma música que escutámos toda nossa vida. O que os mantras têm de tão especial é que mesmo que não entendamos exatamente o que significam, sua vibração continua tendo efeito em nós. Mas o significado desta oração inicial é belo e lendo-o podemos entender porque é o começo perfeito para a prática.

Om
Vande Gurunam charanaravinde
Sandarshita svatmasukhavabodhe
Nishreyase jangalikayamane
Samsara halahala mohashantyai

Abahu Purushakaram
Shankhachakrsi dharinam
Sahasra sirasam svetam
Pranami patanjalimOm

Eu me curvo perante os pés de lótus dos Gurus
Que ensinam o conhecimento, despertando para a felicidade do Ser revelado
Que agem como o físico da selva
Removendo o veneno da existência condicionada.

Perante Patanjali
Com a forma de homem até aos ombros
Branco, com mil cabeças radiantes
Segurando uma espada, um disco e uma concha
Eu me prostro.

 

Blog 24 (5) (787x1186)Começamos com o Pranava Om, ou AUM, com que quase sempre iniciam e terminam os mantras e orações. Diz se que contém todos os sons do Universo porque se formos pronunciar um som com a boca aberta, naturalmente sairá A, fechando sairá o som de M. Para ligar os dois, precisamos fazer o U. A esses três sons são atribuídos diferentes significados: A é o mundo físico, o estado acordado, U o mundo dos pensamentos e o sonho, M o não consciente e o sono sem sonho. A cada um dos três também corresponde aquela que é a definição do Absoluto: Sat-Chit-Ananda (Ser, Consciência e Bem-Aventurança). Nos Yoga Sutras, Patanjali diz que Ishvara, que descreve como uma Consciência não afetada pelo Karma, se manifesta na palavra Om e que a repetição constante deste mantra e meditação no seu significado podem levar diretamente a Samadhi. Acrescenta ainda que traz a lucidez interior e destruição de todos os obstáculos. É incrível como algo aparentemente tão simples pode ter todo esse poder. Buscamos e vamos atrás de mais e mais conhecimento e isso é válido, mas muitas vezes o que encontramos são sinais de que o autoconhecimento se faz com pouco, cada dia, a cada momento. Como sempre, o Ego quer se apropriar de tanto quanto possível, priorizando a quantidade acima de tudo e desconsiderando muitas vezes as coisas mais básicas. Queremos ler e aprender vários mantras, estudar livros cada vez mais complexos, quando podemos simplesmente voltar ao Om e através dele ter acesso ao Absoluto. É como se de cada vez que entoamos este som sagrado, trazendo à nossa mente seu significado e permitindo que nos preencha, reconhecêssemos o Todo, expressássemos nossa vontade de sermos absorvidos e dissolvidos nele.

Em seguida, começa a primeira parte da oração, com uma saudação aos mestres, enunciando o gesto de prostração perante os pés destes. Iniciar nossa prática com este ato de humildade, é reconhecer nosso lugar nessa tradição milenar, deixando para trás o ego individualista que quer seguir apenas sua própria razão. O ritual de se ajoelhar e tocar os pés de outra pessoa pode parecer estranho para o mundo ocidental, em que somos ensinados a não nos curvar perante ninguém, a desconfiar de tudo e a nos afirmarmos por nossa individualidade. Mas que parte de nós deseja realmente ser reconhecido por sua originalidade, perspicácia ou talento? Quando, mesmo que seja mentalmente, nos colocamos de joelhos e tocamos os pés de todos os seres iluminados que permitiram que o Yoga esteja vivo e continue transformando não só nossas vidas, como a de milhões de pessoas, dobramos também nosso Ego e orgulho. Porque como sempre na vida, se achamos que não temos mais nada a aprender, que ninguém nos acrescenta nada ou que nenhum professor está á nossa altura, é sinal de que mais que nunca precisamos de alguém que nos guie, porque estamos indo na direção contrária àquela que uma vez nos propusemos.

Então, abandonemos nossa sede de supremacia e toquemos os pés dos gurus, aqueles que nos levam da escuridão á luz. Estes são pés de lótus e isso tem um significado especial. Estas flores são símbolos recorrentes na mitologia hindu e budista, pela sua incrível capacidade de permanecerem intactas e não serem contaminadas pelo exterior, florindo em plena beleza mesmo quando rodeadas de lodo. No verso 10 do capitulo cinco do Bhagavad Gita, Krishna diz: “Tal como a flor de lótus permanece intocada pela água, o Yogi que faz suas ações abandonando o apego e entregando-as, permanece intocado pela lei do Karma.” Quantas desculpas damos para não atingirmos nosso potencial? Porque o dia está ruim, porque o outro falou uma coisa desagradável, porque as coisas não foram como queríamos, porque não temos tempo. O verdadeiro sábio vive no mundo, mas não perde seu brilho e amor. Não se frustra quando o Universo não corresponde ás suas expectativas, porque sabe que tudo é como tem que ser. Continua agindo, mas entrega suas ações ás leis superiores, desapegando dos possíveis resultados. Descobrindo sua real essência, ele permanece intocado, puro. Tocar seus pés de lótus tem esse sentido mais profundo de nos prostramos perante a beleza dessa sabedoria, ao mesmo tempo em que permite plantar em nós à possibilidade de um dia alcançarmos essa pureza de intenções.

Blog 24 (3) (1280x851)Pelo seu exemplo, estes mestres nos ensinam o conhecimento e levam á felicidade do ser revelado. O que isso significa? Que felicidade é essa, que surge quando revelamos algo, ou seja, quando vemos algo que já lá estava? Somente os mestres têm o poder de nos guiar e dar o conhecimento que não vem em livros, o de nosso ser essencial. Por isso, depois é dito que são como físicos da selva que removem o veneno da ilusão do Samsara. Halahala foi o veneno que surgiu quando deuses e demônios decidiram agitar o oceano da existência para colher o néctar da imortalidade. Quando o liquido azul surgiu, Shiva o engoliu, prendendo-o na garganta, por isso recebe o nome de Nilakantha (garganta azul). Esse veneno representa tudo o que surge quando começamos a mexer na estrutura mental e física formada por tantos anos. Em busca do néctar da imortalidade, ou seja, da liberação, criamos muitas vezes uma revolução interior, da qual emerge esse veneno do apego ao mundo ilusório do ciclo de Samsara. Esse é o ciclo de reencarnações, mas também de oscilações permanentes entre sukha e dukha, prazer e dor. Ficamos presos a identificações com esses dois lados da mesma moeda, nos intoxicando continuamente, para não podermos ver para além disso. Se pudéssemos ser mais como Shiva, poderíamos aceitar essa ilusão sem a digerir ou torna-la parte de nós. Mas o caminho é longo e sozinhos não o sabemos fazer. Por isso, precisamos reconhecer a importância dos mestres, que nos ajudam a remover esse véu de ilusão, sem o qual podemos por fim visualizar nosso verdadeiro e mais profundo Ser.

A segunda parte dessa oração inicial faz parte de uma invocação a Patanjali, o sábio que escreveu os Yoga Sutras. É de novo um gesto mental de reverência, a um ser que nos permitiu acessar tanto conhecimento. Nela se fala que tem metade humana, metade serpente. De fato, se conta que Patanjali é uma encarnação do sábio Adivivesa, o rei das serpentes. Este veio á Terra quando Gonika, uma yogini de respeito, pedia um filho a quem pudesse passar toda sabedoria alcançada por anos. Não tendo nenhum artefato para seu ritual, simplesmente ofereceu um pouco da água do rio onde se banhava, ao Sol. Quando terminou de fazer sua prece, em suas mãos apareceu uma pequena serpente, que logo tomou forma humana. Por isso o nome de Pata (caído) Anjali (mãos em prece). Sua metade inferior, com três voltas e meia de corpo de serpente, remete para diversos simbolismos: os três Gunas (Sattva, Rajas e Tamas), e os três principais canais energéticos: Sushumna (central), Ida (esquerdo, lunar) e Pingala (direito, solar). No topo da cabeça, Patanjali tem mil serpentes, que simbolizam os mil caminhos de conhecimento por ele mostrados. Na oração se menciona ainda a concha, o disco e a espada. A concha, usada antigamente para alertar as povoações de catástrofes eminentes, serve para alertar o praticante de Yoga dos inevitáveis obstáculos encontrados no caminho espiritual. O disco é uma arma muito utilizada pelos deuses, como proteção contra as ações negativas. A espada representa o discernimento, que destrói a ignorância, o ego e o orgulho. De fato, se nos dedicarmos de coração aberto ao estudo dos Yoga Sutras, estes nos mostram o caminho, advertindo para obstáculos, nos protegendo de nossos próprios demônios e cortando com discernimento o espesso véu da ignorância.

Com cada palavra representando um mundo em si mesmo, com cada som vibrando de forma diferente, não é de estranhar que esta oração seja o começo ideal para a prática que se segue. Somos nós que cantamos, mas algo mais acontece, o som toma forma e nós somos tomados por ele. É como se de dentro nós viesse um chamado, que assinala que algo de importante está prestes a acontecer. Como se estivéssemos batendo a porta, pedindo para entrar, dispostos ao que vier. Porque a prática pode ser sempre a mesma, mas a verdade é que nunca sabemos o que nos espera. Então, com esta oração inicial, afirmamos e tornamos mais real nossa atitude de devoção e entrega, lembrando cada dia de nossa gratidão perante os mestres que nos guiam nessa volta a casa que é o caminho espiritual.

Texto de Olga Rodrigues
Imagens de Taeko

 

Entrevista com Lu Andrade

Entrevista com Lu Andrade 1600 1065 Kaka
Em outubro e novembro deste ano, enquanto vivia uma temporada em Mysore, Índia, tive o prazer de compartilhar e fortalecer a amizade com Lu Andrade, que além de ser muito especial é uma grande fonte de inspiração para todos nós como praticantes de Yoga. Lu é brasileira, atualmente vive e ensina em Frankfurt a maior parte do ano e também viaja a diversos lugares para retiros, workshops e intensivos.É uma das poucas mulheres certificadas do mundo e a única de toda a América Latina. Ao longo do tempo que estávamos juntas, Lu cedeu uma entrevista para o blog Ashtanga Yoga Floripa. Espero que suas palavras possam inspirar a todos vocês.
Ana Claudia

 

Como e quando começou seu caminho no Yoga? Como chegou ao Ashtanga?

Lu: Tudo começou quando era pequena e tinha o sonho de ser bailarina. Foi essa vontade que me levou a prestar vestibular para um curso que na época ainda não era reconhecido, mas que abrangia tudo o que me interessava, as artes do corpo. Apesar de já praticar um pouco de yoga, só fui conhecer o Ashtanga em princípios de 2000 na faculdade. Antes de realmente decidir minha prática diária, passei por Iyengar yoga e testei alguns outros métodos, nenhum foi capaz de me manter tão interessada por tanto tempo.

 

lu4Ao longo de todos esses anos, que transformações e mudanças foram mais evidentes e mais importantes?

Lu: A paz mental, a paciência e a vontade de ser um ser humano melhor a cada dia. Claro que com uma prática vigorosa o corpo muda, mas as mudanças mais significativas para mim foram as emocionais e mentais. Me sinto mais inteira, mais completa e mais em paz com a prática de asanas. Com o tempo passei também a trabalhar mais o lado espiritual e a vida ganhou novas dimensões. Minha prática é minha oração!

Que lição ou lições aprendidas com a prática você considera como mais valiosas?

Lu: Aceitação. Aceitar a si, aos demais e aceitar como as coisas se passam sem a urgência de mudar tudo. Aceitar os pensamentos, sentimentos e limites. Enfim, nos aceitar por completo. Isso é um trabalho para várias vidas, mas a cada dia a prática me aponta diferentes situações onde, antes de qualquer coisa, é preciso aceitar, confiar e depois entregar-se… e assim, a mágica acontece.

 

O que você diria para alguém que está iniciando sobre o método?

Lu: Que desfrute de cada momento dentro dessa jornada. O importante na vida é encontrar prazer naquilo que fazemos, não adianta praticar, ser vegetariano e meditar porque alguém disse que faz bem. É importante observar nossos padrões e fazer de nossos dias um laboratório, ser um pesquisador de si mesmo, observar quando estamos bem, quando temos pensamentos positivos, quando temos mais disposição para a prática e observar o oposto também, daí fica fácil optar por aquilo que nos traz bem estar, pois a mudança é de dentro para fora.  O caminho é longo mas, é divertido, basta desfrutar de cada passo, ter a curiosidade de aprender e deixar que cada coisa venha ao seu tempo. O mais importante é estender o tapetinho diariamente e ter paciência, a prática é a nossa melhor guia nessa jornada de auto conhecimento.

lu2Que conselho daria para quem está passando um momento em que é difícil praticar, seja por dores, cansaço, falta de tempo ou outras questões?

Lu: Que comece devagar. Se não tem uma hora agora, que seja quinze minutos diários de saudação ao sol e as três posturas finais, que tenha paciência para que aos poucos o espaço reservado para a prática seja novamente aberto. Que pratique hoje o possível, pois é a prática de hoje que ajuda a de amanha, quanto mais prorrogamos mais difícil de entrar no ritmo de novo. Pratique hoje o possível, cinco minutos de respiração, amanha uma saudação ao sol, depois um pouco mais e assim pouco a pouco construindo uma prática possível de se manter a longo prazo. Não adianta praticar um dia da semana por três horas, melhor um pouco todos os dias, assim não há pressão, assim a prática vira parte da rotina. Com as dores, é importante procurar um professor qualificado e trabalhar com ele passo a passo. Podemos usar a prática de yoga para nos curar físico, emocional e espiritualmente, ou, sem uma correta orientação, pode nos causar lesões e cansaço. Por isso é importante buscar um professor qualificado.Sharath sempre nos diz que uma faca pode servir para cortar frutas ou até para matar alguém, a faca é um instrumento, assim como a prática de asanas, dependendo de como a usamos obteremos diferentes resultados.

O que as palavras disciplina e dedicação significam para você, enquanto praticante de Yoga?

Lu: Disciplina é a nossa capacidade de escolher por aquilo que seja melhor a longo prazo, mesmo que agora não seja. Como por exemplo, levantar da cama bem cedo, com frio lá fora, para praticar. Esse ato demanda disciplina interna, sem ela haveria dias que não sairíamos da cama.Dedicação é realizar algo com amor. Não apenas levantar cedo mas, levantar feliz, encontrar o que nos move, que nos comove, que nos faz ser curiosos… e assim ser disciplinado é mais fácil.Para a prática de yoga, devoção, dedicação e determinação são muito importantes, com esses três a disciplina vem sem esforço maior. O amor por aquilo que fazemos se faz essencial para a evolução deste.

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Atualmente você é uma das poucas mulheres certificadas no mundo e a única de toda América latina, O que isso mudou na sua trajetória?

Lu: Há um encantamento natural do ser humano com títulos, o qual só nos garante a energia despendida para chegar até ele. Eu gostaria que trouxesse a iluminação (risos)… mas, trouxe mais responsabilidades e comprometimento. Senti como se houvesse “casado” com o yoga em todos os sentidos, minha vida é ainda mais voltada a aprender sobre essa ciência, aplicá-la no meu dia a dia e evoluir como ser humano.

Nelson Mandela uma vez disse: “After climbing a great hill, one finds that are many more hills to climb. I have taken a moment here to rest, to steal a view of the glorious vista that surrounds me, to look back on the distance I have come. But I can only rest for a moment, for with freedom comes responsibilities, and I dare not to linger, for my long walk has not yet ended.” *A certificação é uma montanha alta, mas existem outras muito maiores. Portanto, agradeço haver chegado até aqui, tomo conhecimento das responsabilidades que isso traz e sigo meu caminhar com mais dedicação e espero, mais humildade.

IMG_1529O que você pensa sobre a popularização do método nos últimos anos?

Lu: É algo que o professor Krishnamacharya pediu como retorno por aquilo que havia ensinado. Que a mensagem do yoga se espalhasse e que todos os seres pudessem receber os benefícios dessa prática. A cada ano fica mais difícil estudar em Mysore, a cada ano mais pessoas estão praticando. O que é muito bom, pessoas no caminho da transformação pessoal, mais seres humanos conscientes no mundo. Não importa a intenção que nos leva até o yoga, com uma prática sincera e dedicada nos transformamos profundamente.

Qual é sua relação com Sharath Jois e quão importante a presença dele é na sua jornada como praticante?

Lu: Sharath Jois é meu professor, uma pessoa de extrema importância para o meu sadhana, é seu esforço e dedicação que me inspiram a seguir esse caminho diariamente. Quem me traz conhecimento, me desafia, me traz consciência, me faz questionar, me faz ter vontade de ser uma pessoa melhor… É meu guru, aquele que trouxe a luz do conhecimento e me libertou da escuridão da ignorância, por quem sou eternamente grata.

 

Muito obrigada pela disponibilidade, palavras e amor e dedicação à prática.
Espero vê-la em breve!!

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* ”Depois de escalar uma grande montanha, você descobre que ainda existem muitas para ultrapassar. Aqui, tomei um momento para descansar, para admirar a vista gloriosa que me rodeia, para olhar para trás, desde à distância de onde vim. Mas, só posso descansar por um momento, pois, com a liberdade vem a responsabilidade, e não me atrevo a ficar, minha longa caminhada ainda não terminou.”

Yoga & Alimentação

Yoga & Alimentação 1600 1066 Kaka
Se nos tivessem dito antes de começarmos a praticar Yoga quanto isso iria mudar em nossas vidas, provavelmente não acreditaríamos. Nosso entusiasmo e motivação, o tempo dedicado, novas perspectivas e visões de nós mesmos que nunca antes tínhamos percebido, a forma como esta prática tocou todas as áreas da nossa vida, seja relacionamentos, trabalho ou família. Porque isso acontece? Provavelmente, porque ao nos enfrentarmos no tapetinho cada dia, nos tornamos mais presentes, mais sintonizados com nosso corpo e mente. Isso faz com que percebamos melhor como estes estão naquele determinado momento e como reagem as diferentes situações, buscando as que nos fazem sentir melhor. A alimentação não é exceção e é talvez uma das áreas mais perceptíveis de mudança, tanto para nós quanto para os outros. Talvez porque é algo que fazemos pelo menos três vezes por dia, cada dia, muitas vezes como algo social. Não só começamos a sentir mais claramente os efeitos de certas comidas, como deixamos de conseguir comer outras. Quanto mais nosso corpo e mente vão ficando livres de toxinas, sejam elas grosseiras ou sutis, menos somos atraídos pelos alimentos, situações e relações que nos intoxicam. Essa é uma transição natural e um processo que vai acompanhando o caminho do auto conhecimento.
Mas será que se pode dizer que existe uma alimentação realmente perfeita para praticantes de Yoga? 
Se nossa prática é guiada por uma busca de paz interior, luz, equilíbrio e felicidade, seria lógico que nos nutríssemos com comidas que nos trazem essas qualidades. Ou seja, comidas repletas de Sattva, um dos três Gunas. Sattva, Rajas e Tamas são as energias que mais influenciam a mente. Predominam alternadamente e são aumentadas por diferentes fatores, sendo um deles a alimentação. Sattva é pura luz, é sutil e traz virtudes como benevolência, sabedoria, generosidade e honestidade. Quando prevalece, nossas ações têm como motivação a liberação espiritual, o auto conhecimento e o bem de todos os seres. É como se ao deixar a mente mais limpa e clara, houvesse finalmente espaço para que Buddhi, o intelecto se manifestasse, nos guiando para agirmos mais conscientemente, mais de acordo com o Dharma. O doce é o sabor sátvico por excelência, por ser nutritivo e calmante, mas a alimentação sátvica deve ter os seis sabores (doce, salgado, ácido, amargo, picante, adstringente) em quantidades moderadas.
Os alimentos que mais nos trazem equilíbrio e harmonia, e por isso são mais adequados a pratica de Yoga e meditação, são:
  • Frutas frescas e de estação.
  • A maioria dos vegetais, sobretudo quando frescos e cozidos. 
  • Grãos, sementes e nozes.
  • Leite, queijos frescos e ghee orgânicos.
  • Adoçantes naturais como mel e 
  • Óleos virgens como o de gergelim, coco e oliva.
  • Especiarias, ervas doces e picantes suaves: gengibre, canela, cardamomo, cúrcuma, funcho, coentros e manjericão. 
  • Comida feita com amor e consciência
Por outro lado, devemos pensar em reduzir Rajas, a energia do movimento e mudança, que gera emoções contraditórias, como amor e ódio, aversão e apego. Quando impera sobre nossa mente somos movidos por desejos egoísticos, como a ganância, a ambição desmedida ou a competição. Cria instabilidade, agitação e impaciência.  Os alimentos rajásicos são os estimulantes como café, chá e chocolate, mas também aqueles que contém o sabor picante, ácido e salgado muito forte, como alho, cebola, malaguetas, vinho, picles e vinagre, assim como a maioria dos feijões. Embora estes alimentos não sejam adequados para quem ter uma mente apta para meditação, devemos lembrar que não somos renunciantes, e por vezes precisamos do impulso dado por questões do ego, podendo usar com moderação estes alimentos. Também, podemos aumentar esta energia intensa e brusca para sair de Tamas, que é tão denso que não é sequer influenciada por Sattva. 
marzaTamas é a energia da escuridão, inércia e destruição.  A mente se torna tão carregada e obtusa que caímos na inércia, apatia, estagnação e apego emocional, reagindo e sendo atraídos apenas por estímulos fortes, como filmes violentos. As ações são guiadas pela ignorância, sem atender a noções básicas como a lei causa-efeito. É o típico caso da pessoa que culpa o mundo pelas suas desgraças, enquanto continua a agir da mesma forma, uma e outra vez.  As comidas processadas ou congeladas, conservas, carne, peixe, cogumelos, açúcar e farinhas refinadas, álcool, assim como comer excessivamente, aumentam Tamas, embotando a mente e dificultando o processo de evolução espiritual.
Se queremos ter uma alimentação sátvica, precisamos também pensar nos princípios éticos que são o pilar que sustenta a prática de Yoga. Em primeiro lugar, talvez o mais importante, Ahimsa, não violência. Pensando que semelhante gera semelhante, como podemos querer que um alimento produzido através da morte e dor de um animal possa nos dar tranquilidade e paz? Ahimsa está implícito no conceito de alimentação sátvica pelo simples fato de que não há nada de pacifico, luminoso ou generoso em matar um animal para satisfazer nossa necessidade de nutrição ou prazer, quando há outras formas de a atender. Mas com o progresso da agricultura e indústria pecuária, se formos questionar nossa alimentação com base em Ahimsa, teremos que ir mais longe. Precisamos saber em que condições foram criados os animais que deram leite ou ovos, assim como que impacto teve na Natureza a cultura de determinados alimentos. Não causar dano é um principio que permeia tudo, não se limitando a algumas espécies ou seres vivos. Reflitamos se uma vida inteira passada em condições desumanas, enclausurado e sem nunca ter visto o sol, justifica nosso prazer de comer uma omelete ou um queijo. A mesma ponderação deve acontecer sobre o impacto que têm as monoculturas, o uso de agrotóxicos e transgênicos no planeta e obviamente, na própria humanidade. Por isso, sempre que possível, devemos preferir alimentos orgânicos. Isso é um verdadeiro ato de Ahimsa e amor pelo mundo em que vivemos. 

_mg_7655Ahimsa é também com nós mesmos, devemos comer aquilo que nos faz realmente bem. Parece simples, mas pensemos em quantas vezes procuramos alimentos que sabemos que nos causam dano. Aí entra Tapas, a autodisciplina. Não precisamos ser austeros com o que pomos no prato, mas talvez seja benéfico questionar nossas escolhas, se realmente queremos atingir certo equilíbrio. Isso requer Satya, honestidade, para entendermos quão verdadeiros estamos sendo com nós mesmos.  Talvez se contradizer seja tão humano quanto errar, mas se assumimos o compromisso do auto conhecimento, é também para controlar esses impulsos da mente e do ego e seu consequente sofrimento. Se sabemos por experiência própria que comer cinco brigadeiros nos vai fazer mal, porque o fazemos, esperando que desta vez, só desta vez, isso não aconteça? Não podemos querer fugir às leis do Universo, que regem também nosso corpo e mente.  Quanto mais tentamos compreende-las e adaptar nos a elas, mais harmônica será nossa alimentação, com resultados visíveis no nosso corpo físico e sutil.
O que nos leva a outra questão importante. Se queremos fazer escolhas conscientes quanto a nossa alimentação, precisamos observar nosso corpo, nossa mente, os alimentos que temos ao nosso dispor e o que está ao nosso redor. Por isso, para todos os yogis, vale a pena conhecer um pouco de Ayurveda, usando a auto-observação que cultivamos cada dia no tapetinho. Entre outras coisas, esta ciência enumera alguns atributos que estão presentes tanto em nós como nos alimentos e entorno: quente/frio, úmido/seco, leve/pesado, móvel/lento, suave/áspero, assim como pegajoso e penetrante. Essa classificação pode parecer reduzida, mas nos ajuda a entender que efeito determinada comida vai ter. Essa é afinal, a base de uma alimentação adequada, já cada um tem suas necessidades especificas e individuais que deve conhecer, mais do que seguir listas do que pode ou não comer. Se o dia está frio, úmido e pesado e comemos um sorvete, o que acontece? Essas qualidades aumentam em nós de tal forma que podem chegar a um desequilíbrio, produzindo muco. Ou num dia frio e seco, com muito vento, comemos uma alface tirada da geladeira. Como iremos sentir? Provavelmente mais leves e frios ainda. Se formos praticar no dia seguinte vamos sentir a secura extrema das articulações e a consequente dor. O mesmo se comermos algo muito picante num dia quente. Talvez a irritação posterior seja tanta que nem associemos uma coisa à outra. 
Ou seja, precisamos ter em conta nossa constituição, nossas condições, o clima e até hora do dia. Tal como na nossa prática diária aprendemos a deixar de querer controlar o externo e a fluirmos com o movimento natural de nossos corpos, também na hora de comer podemos entrar na dança dinâmica de constante mudança que é a natureza, da qual obviamente fazemos parte. 
O curioso é que nossa prática de Asanas e Pranayama não só se beneficia com uma alimentação mais adequada, mas também ajuda a consegui-la. Purificarmos diariamente nosso corpo físico e energético, estimulando a circulação sanguínea e linfática, absorvendo Energia Vital ao máximo em cada respiração, removendo bloqueios e limpando nadis, não só nos faz escolher melhor o que pomos no prato como nos faz aproveitar melhor o que comemos. O Udyana Bandha, por exemplo, com seu ênfase na região abdominal, estimula o Agni, o fogo digestivo. E o Mula Bandha, ao equilibrar a ação descendente do Apana Vayu, faz como um fechamento adequado para que o Prana trazido tanto pela respiração quanto pela comida não se esvaia e possa chegar a todos os lugares do corpo.
juicelineAliás, essa deve ser também uma prioridade para quem pratica Yoga: alimentos ricos em Prana, a energia vital que nos dá entusiasmo, criatividade e adaptabilidade. Regra geral, quanto mais frescos e vivos os alimentos, mais Prana contém. Por isso, brotos, folhas verdes e alimentos crus são indicados. Porém, se nosso fogo digestivo não é forte, o Ar e Éter contidos nesses alimentos originam desequilíbrios como constipação, flatulência e até mesmo agitação, medo e insônias. Assim, se quisermos aproveitar o alto conteúdo em Prana destas comidas, precisamos saber primeiro se temos capacidade de as digerir. Se nosso Agni está fraco, ou seja, se temos pouca fome e sentimos desconfortos como sensação de peso, azia ou gases, o que podemos fazer é estimulá-lo com picantes suaves como o gengibre, assim como nos alimentarmos nos horários mais adequados como o meio-dia, de manhã e antes das 8h da noite. Também é necessário que tenhamos Ojas, a quintessência de Kapha que dá contentamento, imunidade e resistência, e que é o veículo de Prana. Para tal, além de cultivarmos uma atitude de devoção, devemos incluir alimentos como amêndoas, tâmaras, mel e ghee, naturalmente ricos e nutritivos.
Yoga é mais do que um exercício físico, de respiração ou concentração, está presente em todas nossas ações, até as mais básicas, como comer. Vivemos a prática de Yoga também quando trazemos nossa atenção para o momento presente, refletindo sobre nossas escolhas, com intenções puras de transformar positivamente nossas vidas. Entendendo que nos alimentarmos é mais uma forma de entrar na dança do Universo, alinhando nossas necessidades com suas leis e valores, escolhendo sempre o caminho que mais gera paz e luz, tanto em nós como no mundo ao nosso redor. 
Texto de Olga Rodrigues
Imagens de Kike Krueger e Marza Tozo

Pratyahara

Pratyahara 1600 1066 Kaka
“Os sentidos são espelhos. Virados para fora refletem o exterior, virados para dentro refletem pura luz.”
Swami Satchidananda

Uma das coisas mais fascinantes nos Yoga Sutras é a forma como sua aparente simplicidade esconde uma enorme complexidade. São poucas palavras em cada sutra, mas cada uma abre um leque de possibilidades. Podemos observar como cada termo está onde tem que estar, como a ordem e a estrutura do que é dito revela a importância e significado contido. Por isso, não é de admirar que Pratyahara seja exatamente o quinto dos Angas ou membros dos oito descritos nos Yoga Sutras. Muitas vezes traduzido como recolher dos sentidos, se encontra exatamente no meio termo entre as ações externas que escolhemos fazer, como o Asana, e as espontâneas, sobre as quais não temos nenhum controle, como Dharana, Dhyana e Samadhi. Pratyahara é como uma ponte, que liga o externo e o interno, o voluntário e o espontâneo.

10307197_10201861454438489_2370051751241277513_nNo sutra II. 55, Patanjali diz que Pratyahara resulta no controle absoluto dos órgãos dos sentidos. Porque isso é tão importante? No Katha Upanishad, o corpo é comparado a uma carruagem, dirigido por Buddhi (intelecto) através de Manas (mente) que seria as rédeas que prendem os sentidos, representados pelos cavalos. O que acontece, se estes são indomados e selvagens? Levam-nos para qualquer lugar, sem que possamos decidir nada sobre nosso rumo. Vêm um prado com grama fresca e correm disparados para lá. Assustam-se com algo e disparam alvoroçados, retrocedendo. A carruagem não pode fazer mais do que segui-los, Buddhi deixa de poder guiar com discernimento. Quem nunca sentiu seu corpo e mentes totalmente tomados por uma música agradável? Quem nunca ficou com uma imagem impactante na cabeça por dias, sem conseguir esquecê-la? Quem nunca sentiu como determinado aroma parece trazer ao presente um momento remoto? As impressões entram pelos sentidos, são processadas pela mente e muitas vezes são tão fortes que nos condicionam. Ficamos muitas vezes inebriados por uma sensação, tão tomados por aquele estimulo sensorial que perdemos a lucidez para pensar claramente, levando-nos a tomar decisões pouco adequadas. Infelizmente, isso acontece mais vezes do que gostaríamos.

Essa confusão sobre quem está realmente no comando da carruagem só acontece porque deixamos os sentidos tomarem um lugar que não lhes pertence. A força dos cavalos é imprescindível para que a carruagem ande, tal como os sentidos são essenciais para percebermos e agirmos no mundo. O problema começa quando as sensações controlam nossas ações, quando a mente corre inquieta em busca de estimulo constante. Até porque as sensações são em ultima instância, ilusões. Afinal, não podemos saber exatamente como seria a realidade se esta não fosse traduzida pelos sentidos e mente. A cor percebida na nossa mente não é mais do que a tradução da luz trazida através do olho, assim como o som é a tradução de uma vibração. Uma antiga história conta sobre quatro homens cegos que tocaram num elefante pela primeira vez. O primeiro tocou na perna e disse que era um pilar. O segundo tocou na barriga e achou que era uma parede. O terceiro tocou na orelha e pensou que era um pedaço de pano. O quarto segurou na cauda, falando que era uma corda. Os quatro entraram numa discussão acesa, cada um teimando que sua percepção correspondia à realidade. Essa história mostra como somos facilmente enganados pelos sentidos e mente, como somos levados a acreditar que nossa percepção é a única que está certa.

Literalmente, Pratyahara significa contra (Prati) a comida (Ahara). Mas essa comida tem um sentido mais amplo: aquilo que colocamos para dentro, podendo tomar forma de alimentos, impressões ou relações com outras pessoas. Então, talvez Pratyahara seja mais do que controlar a inquietação dos sentidos, englobando também escolher a qualidade do que entra por eles. Tal como o alimento depois de digerido se torna parte de nossas células, também as impressões digeridas compõem nossa estrutura sutil. Assim, tentemos o exercício de observar os estímulos com que alimentamos nossa consciência. Que imagens, sons, cheiros, texturas e gostos enchemos nossos sentidos e por consequência nossa mente e alma? São harmônicos, belos, naturais, simples e luminosos ou agressivos, violentos, demasiado intensos?

10171831_10201861452678445_2417603896820714704_nObservarmos a qualidade das impressões que procuramos em nosso dia nos permite conhecer melhor nossa mente, seus padrões e condicionamentos. Se as impressões que consumimos são claramente violentas e escuras, talvez possamos entender porque não atingimos paz e luz. Ao mesmo tempo, podemos questionar porque preferimos essas sensações mais fortes, normalmente porque nossa mente está dominada por Rajas ou Tamas. O mesmo se aplica ao significado de Ahara como relações, já que estas também nos alimentam emocionalmente. Muitas vezes entendemos o caminho espiritual como o da renúncia, mas talvez essa seja somente uma das possibilidades. Tal como durante nossa prática podemos escutar e ver a pessoa do lado se movimentando e respirando sem que isso nos incomode, também podemos nos relacionar com os outros de forma a não sermos levados por seus dramas, problemas e questões. Isso não significa que nos deixemos de importar com os outros, mas que não permaneçamos em relações e situações tóxicas, tão densas quanto o filme mais violento ou a música mais agressiva, incapazes de gerar luz ou paz.

Quando acalmamos a sede de estímulos dos sentidos e mente, observamos e escolhemos as impressões com que nos alimentamos, Buddhi ganha finalmente o controle das rédeas e dos cavalos. Sendo Buddhi o intelecto superior, a parte da mente mais em contato com o Todo, é naturalmente na direção da luz, do essencial e do divino que guiará a carruagem. No Baghavad Gita é dito que Pratyahara é como uma tartaruga recolhida na sua carapaça. Ou seja, agora os sentidos são virados para dentro. Mas estes não deixam de funcionar. Os estímulos continuam chegando, simplesmente nossa mente não está mais condicionada por eles, permanecendo focado no nosso interior.

10259978_10201802387561854_8036094774768705609_nComo dito antes, Pratyahara é a ponte entre os quatro primeiros Angas e os três últimos, não sendo totalmente uma ação externa e voluntária nem somente algo espontâneo e interno. Ou seja, que podemos fazer nossa parte, trabalhando nessa auto-observação e descondicionamento, e embora haja alguns exercícios de Pratyahara, o verdadeiro controle dos sentidos requer tempo e maturidade. Porque embora os oito Angas estejam interconectados e não sejam algo que simplesmente vamos ultrapassando e deixando para trás, a ordem pela qual estão descritos tem um sentido. Em cada Anga, vamos refinando nossa consciência e percepção, trazendo nossa atenção para aspetos cada vez mais internos e sutis: começamos com a nossa relação com o mundo nos Yamas, observamos condutas pessoais com os Niyamas, ganhamos estabilidade e conforto no corpo físico com os Asanas e começamos a controlar respiração, logo a mente e energia vital com o Pranayama. O que isso cria? Uma tranquilidade que nos permite chegar a lidar com algo tão sutil e ao mesmo tempo tão volátil como os sentidos. Por isso, para chegar a Pratyahara é necessário estar estabelecido primeiro nos Angas anteriores. É difícil trazer para dentro os sentidos se nosso corpo reclama de dor depois de sentar uns minutos na mesma postura, ou se nossa respiração corre ofegante, descontrolando a mente. Mas se vamos colocando com coerência e firmeza nossos pés em cada degrau do Ashtanga Yoga, chegamos naturalmente a Pratyahara. O que pode acontecer até em plena prática de Asanas. Nela, temos o dhristi para dirigir nossa visão, a respiração Ujjayi nossa audição, o movimento e Bandhas nossas sensações táteis. O que acontece então? Nossos sentidos e logo nossa mente estão tão focados nesses pontos, tão virados para aquilo que acontece com nosso corpo e dentro de nós, que aquilo que acontece ao nosso redor não nos desconcentra mais. Nossa mente está subitamente liberada dos condicionamentos criados pelas impressões trazidas do exterior e nessa liberdade Dharana, Dhyana e Samadhi podem por fim acontecer.

Talvez ao inicio, quando começamos a ler e escutar sobre Yoga e como controlar corpo, mente, respiração, sentidos ou ações, fiquemos com a sensação que esta é uma disciplina austera, em que esses aspetos devem ser calados ou contidos. Pelo contrário, se trata de conhecer cada um deles para poder encontrar mais facilmente o que já está dentro de nós, nossa verdade essencial. Pratyahara se torna assim um passo fundamental no caminho até a liberação, quando conseguimos fazer dos sentidos nossos aliados para enxergarmos nossa verdadeira luz.

Texto de Olga Rodrigues
Imagens de Kike Krueger & Marza Tozo