fbpx

Ashtanga Yoga Mantra

Ashtanga Yoga Mantra

Ashtanga Yoga Mantra 1280 853 Kaka

Não importa se estamos num Shala cheio ou em casa sozinhos. Se nosso dia anterior foi agitado e ainda nos sentimos inquietos. Se nosso corpo reclama de desconforto. Se estamos num momento difícil de nossas vidas. Se nossa mente não para um minuto, enumerando as coisas lá fora em que precisamos pensar. Cada um de nós tem seu universo pessoal, com suas relações, preocupações e questões, não é fácil simplesmente pôr tudo isso de lado só porque vamos praticar. Mas no momento em que ficamos na frente de nosso tapetinho em Samastithi, mãos juntas em frente ao peito, olhos fechados, pés firmes no chão, coluna reta, polos feminino e masculino, lado lunar e lado solar unidos, em que sincronizamos nossa respiração e começamos o mantra inicial, algo de sagrado acontece. Á medida que o som nos vai preenchendo, os pensamentos e preocupações deixam de ter espaço para se manifestarem, nosso corpo vibra, nossa respiração se acalma e a mente se volta para dentro.

Ao início, as palavras parecem impossíveis de pronunciar e decorar, mas aos poucos cada uma delas vai se tornando algo tão nosso como uma música que escutámos toda nossa vida. O que os mantras têm de tão especial é que mesmo que não entendamos exatamente o que significam, sua vibração continua tendo efeito em nós. Mas o significado desta oração inicial é belo e lendo-o podemos entender porque é o começo perfeito para a prática.

Om
Vande Gurunam charanaravinde
Sandarshita svatmasukhavabodhe
Nishreyase jangalikayamane
Samsara halahala mohashantyai

Abahu Purushakaram
Shankhachakrsi dharinam
Sahasra sirasam svetam
Pranami patanjalimOm

Eu me curvo perante os pés de lótus dos Gurus
Que ensinam o conhecimento, despertando para a felicidade do Ser revelado
Que agem como o físico da selva
Removendo o veneno da existência condicionada.

Perante Patanjali
Com a forma de homem até aos ombros
Branco, com mil cabeças radiantes
Segurando uma espada, um disco e uma concha
Eu me prostro.

 

Blog 24 (5) (787x1186)Começamos com o Pranava Om, ou AUM, com que quase sempre iniciam e terminam os mantras e orações. Diz se que contém todos os sons do Universo porque se formos pronunciar um som com a boca aberta, naturalmente sairá A, fechando sairá o som de M. Para ligar os dois, precisamos fazer o U. A esses três sons são atribuídos diferentes significados: A é o mundo físico, o estado acordado, U o mundo dos pensamentos e o sonho, M o não consciente e o sono sem sonho. A cada um dos três também corresponde aquela que é a definição do Absoluto: Sat-Chit-Ananda (Ser, Consciência e Bem-Aventurança). Nos Yoga Sutras, Patanjali diz que Ishvara, que descreve como uma Consciência não afetada pelo Karma, se manifesta na palavra Om e que a repetição constante deste mantra e meditação no seu significado podem levar diretamente a Samadhi. Acrescenta ainda que traz a lucidez interior e destruição de todos os obstáculos. É incrível como algo aparentemente tão simples pode ter todo esse poder. Buscamos e vamos atrás de mais e mais conhecimento e isso é válido, mas muitas vezes o que encontramos são sinais de que o autoconhecimento se faz com pouco, cada dia, a cada momento. Como sempre, o Ego quer se apropriar de tanto quanto possível, priorizando a quantidade acima de tudo e desconsiderando muitas vezes as coisas mais básicas. Queremos ler e aprender vários mantras, estudar livros cada vez mais complexos, quando podemos simplesmente voltar ao Om e através dele ter acesso ao Absoluto. É como se de cada vez que entoamos este som sagrado, trazendo à nossa mente seu significado e permitindo que nos preencha, reconhecêssemos o Todo, expressássemos nossa vontade de sermos absorvidos e dissolvidos nele.

Em seguida, começa a primeira parte da oração, com uma saudação aos mestres, enunciando o gesto de prostração perante os pés destes. Iniciar nossa prática com este ato de humildade, é reconhecer nosso lugar nessa tradição milenar, deixando para trás o ego individualista que quer seguir apenas sua própria razão. O ritual de se ajoelhar e tocar os pés de outra pessoa pode parecer estranho para o mundo ocidental, em que somos ensinados a não nos curvar perante ninguém, a desconfiar de tudo e a nos afirmarmos por nossa individualidade. Mas que parte de nós deseja realmente ser reconhecido por sua originalidade, perspicácia ou talento? Quando, mesmo que seja mentalmente, nos colocamos de joelhos e tocamos os pés de todos os seres iluminados que permitiram que o Yoga esteja vivo e continue transformando não só nossas vidas, como a de milhões de pessoas, dobramos também nosso Ego e orgulho. Porque como sempre na vida, se achamos que não temos mais nada a aprender, que ninguém nos acrescenta nada ou que nenhum professor está á nossa altura, é sinal de que mais que nunca precisamos de alguém que nos guie, porque estamos indo na direção contrária àquela que uma vez nos propusemos.

Então, abandonemos nossa sede de supremacia e toquemos os pés dos gurus, aqueles que nos levam da escuridão á luz. Estes são pés de lótus e isso tem um significado especial. Estas flores são símbolos recorrentes na mitologia hindu e budista, pela sua incrível capacidade de permanecerem intactas e não serem contaminadas pelo exterior, florindo em plena beleza mesmo quando rodeadas de lodo. No verso 10 do capitulo cinco do Bhagavad Gita, Krishna diz: “Tal como a flor de lótus permanece intocada pela água, o Yogi que faz suas ações abandonando o apego e entregando-as, permanece intocado pela lei do Karma.” Quantas desculpas damos para não atingirmos nosso potencial? Porque o dia está ruim, porque o outro falou uma coisa desagradável, porque as coisas não foram como queríamos, porque não temos tempo. O verdadeiro sábio vive no mundo, mas não perde seu brilho e amor. Não se frustra quando o Universo não corresponde ás suas expectativas, porque sabe que tudo é como tem que ser. Continua agindo, mas entrega suas ações ás leis superiores, desapegando dos possíveis resultados. Descobrindo sua real essência, ele permanece intocado, puro. Tocar seus pés de lótus tem esse sentido mais profundo de nos prostramos perante a beleza dessa sabedoria, ao mesmo tempo em que permite plantar em nós à possibilidade de um dia alcançarmos essa pureza de intenções.

Blog 24 (3) (1280x851)Pelo seu exemplo, estes mestres nos ensinam o conhecimento e levam á felicidade do ser revelado. O que isso significa? Que felicidade é essa, que surge quando revelamos algo, ou seja, quando vemos algo que já lá estava? Somente os mestres têm o poder de nos guiar e dar o conhecimento que não vem em livros, o de nosso ser essencial. Por isso, depois é dito que são como físicos da selva que removem o veneno da ilusão do Samsara. Halahala foi o veneno que surgiu quando deuses e demônios decidiram agitar o oceano da existência para colher o néctar da imortalidade. Quando o liquido azul surgiu, Shiva o engoliu, prendendo-o na garganta, por isso recebe o nome de Nilakantha (garganta azul). Esse veneno representa tudo o que surge quando começamos a mexer na estrutura mental e física formada por tantos anos. Em busca do néctar da imortalidade, ou seja, da liberação, criamos muitas vezes uma revolução interior, da qual emerge esse veneno do apego ao mundo ilusório do ciclo de Samsara. Esse é o ciclo de reencarnações, mas também de oscilações permanentes entre sukha e dukha, prazer e dor. Ficamos presos a identificações com esses dois lados da mesma moeda, nos intoxicando continuamente, para não podermos ver para além disso. Se pudéssemos ser mais como Shiva, poderíamos aceitar essa ilusão sem a digerir ou torna-la parte de nós. Mas o caminho é longo e sozinhos não o sabemos fazer. Por isso, precisamos reconhecer a importância dos mestres, que nos ajudam a remover esse véu de ilusão, sem o qual podemos por fim visualizar nosso verdadeiro e mais profundo Ser.

A segunda parte dessa oração inicial faz parte de uma invocação a Patanjali, o sábio que escreveu os Yoga Sutras. É de novo um gesto mental de reverência, a um ser que nos permitiu acessar tanto conhecimento. Nela se fala que tem metade humana, metade serpente. De fato, se conta que Patanjali é uma encarnação do sábio Adivivesa, o rei das serpentes. Este veio á Terra quando Gonika, uma yogini de respeito, pedia um filho a quem pudesse passar toda sabedoria alcançada por anos. Não tendo nenhum artefato para seu ritual, simplesmente ofereceu um pouco da água do rio onde se banhava, ao Sol. Quando terminou de fazer sua prece, em suas mãos apareceu uma pequena serpente, que logo tomou forma humana. Por isso o nome de Pata (caído) Anjali (mãos em prece). Sua metade inferior, com três voltas e meia de corpo de serpente, remete para diversos simbolismos: os três Gunas (Sattva, Rajas e Tamas), e os três principais canais energéticos: Sushumna (central), Ida (esquerdo, lunar) e Pingala (direito, solar). No topo da cabeça, Patanjali tem mil serpentes, que simbolizam os mil caminhos de conhecimento por ele mostrados. Na oração se menciona ainda a concha, o disco e a espada. A concha, usada antigamente para alertar as povoações de catástrofes eminentes, serve para alertar o praticante de Yoga dos inevitáveis obstáculos encontrados no caminho espiritual. O disco é uma arma muito utilizada pelos deuses, como proteção contra as ações negativas. A espada representa o discernimento, que destrói a ignorância, o ego e o orgulho. De fato, se nos dedicarmos de coração aberto ao estudo dos Yoga Sutras, estes nos mostram o caminho, advertindo para obstáculos, nos protegendo de nossos próprios demônios e cortando com discernimento o espesso véu da ignorância.

Com cada palavra representando um mundo em si mesmo, com cada som vibrando de forma diferente, não é de estranhar que esta oração seja o começo ideal para a prática que se segue. Somos nós que cantamos, mas algo mais acontece, o som toma forma e nós somos tomados por ele. É como se de dentro nós viesse um chamado, que assinala que algo de importante está prestes a acontecer. Como se estivéssemos batendo a porta, pedindo para entrar, dispostos ao que vier. Porque a prática pode ser sempre a mesma, mas a verdade é que nunca sabemos o que nos espera. Então, com esta oração inicial, afirmamos e tornamos mais real nossa atitude de devoção e entrega, lembrando cada dia de nossa gratidão perante os mestres que nos guiam nessa volta a casa que é o caminho espiritual.

Texto de Olga Rodrigues
Imagens de Taeko