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Pratyahara

Pratyahara

Pratyahara 1600 1066 Kaka
“Os sentidos são espelhos. Virados para fora refletem o exterior, virados para dentro refletem pura luz.”
Swami Satchidananda

Uma das coisas mais fascinantes nos Yoga Sutras é a forma como sua aparente simplicidade esconde uma enorme complexidade. São poucas palavras em cada sutra, mas cada uma abre um leque de possibilidades. Podemos observar como cada termo está onde tem que estar, como a ordem e a estrutura do que é dito revela a importância e significado contido. Por isso, não é de admirar que Pratyahara seja exatamente o quinto dos Angas ou membros dos oito descritos nos Yoga Sutras. Muitas vezes traduzido como recolher dos sentidos, se encontra exatamente no meio termo entre as ações externas que escolhemos fazer, como o Asana, e as espontâneas, sobre as quais não temos nenhum controle, como Dharana, Dhyana e Samadhi. Pratyahara é como uma ponte, que liga o externo e o interno, o voluntário e o espontâneo.

10307197_10201861454438489_2370051751241277513_nNo sutra II. 55, Patanjali diz que Pratyahara resulta no controle absoluto dos órgãos dos sentidos. Porque isso é tão importante? No Katha Upanishad, o corpo é comparado a uma carruagem, dirigido por Buddhi (intelecto) através de Manas (mente) que seria as rédeas que prendem os sentidos, representados pelos cavalos. O que acontece, se estes são indomados e selvagens? Levam-nos para qualquer lugar, sem que possamos decidir nada sobre nosso rumo. Vêm um prado com grama fresca e correm disparados para lá. Assustam-se com algo e disparam alvoroçados, retrocedendo. A carruagem não pode fazer mais do que segui-los, Buddhi deixa de poder guiar com discernimento. Quem nunca sentiu seu corpo e mentes totalmente tomados por uma música agradável? Quem nunca ficou com uma imagem impactante na cabeça por dias, sem conseguir esquecê-la? Quem nunca sentiu como determinado aroma parece trazer ao presente um momento remoto? As impressões entram pelos sentidos, são processadas pela mente e muitas vezes são tão fortes que nos condicionam. Ficamos muitas vezes inebriados por uma sensação, tão tomados por aquele estimulo sensorial que perdemos a lucidez para pensar claramente, levando-nos a tomar decisões pouco adequadas. Infelizmente, isso acontece mais vezes do que gostaríamos.

Essa confusão sobre quem está realmente no comando da carruagem só acontece porque deixamos os sentidos tomarem um lugar que não lhes pertence. A força dos cavalos é imprescindível para que a carruagem ande, tal como os sentidos são essenciais para percebermos e agirmos no mundo. O problema começa quando as sensações controlam nossas ações, quando a mente corre inquieta em busca de estimulo constante. Até porque as sensações são em ultima instância, ilusões. Afinal, não podemos saber exatamente como seria a realidade se esta não fosse traduzida pelos sentidos e mente. A cor percebida na nossa mente não é mais do que a tradução da luz trazida através do olho, assim como o som é a tradução de uma vibração. Uma antiga história conta sobre quatro homens cegos que tocaram num elefante pela primeira vez. O primeiro tocou na perna e disse que era um pilar. O segundo tocou na barriga e achou que era uma parede. O terceiro tocou na orelha e pensou que era um pedaço de pano. O quarto segurou na cauda, falando que era uma corda. Os quatro entraram numa discussão acesa, cada um teimando que sua percepção correspondia à realidade. Essa história mostra como somos facilmente enganados pelos sentidos e mente, como somos levados a acreditar que nossa percepção é a única que está certa.

Literalmente, Pratyahara significa contra (Prati) a comida (Ahara). Mas essa comida tem um sentido mais amplo: aquilo que colocamos para dentro, podendo tomar forma de alimentos, impressões ou relações com outras pessoas. Então, talvez Pratyahara seja mais do que controlar a inquietação dos sentidos, englobando também escolher a qualidade do que entra por eles. Tal como o alimento depois de digerido se torna parte de nossas células, também as impressões digeridas compõem nossa estrutura sutil. Assim, tentemos o exercício de observar os estímulos com que alimentamos nossa consciência. Que imagens, sons, cheiros, texturas e gostos enchemos nossos sentidos e por consequência nossa mente e alma? São harmônicos, belos, naturais, simples e luminosos ou agressivos, violentos, demasiado intensos?

10171831_10201861452678445_2417603896820714704_nObservarmos a qualidade das impressões que procuramos em nosso dia nos permite conhecer melhor nossa mente, seus padrões e condicionamentos. Se as impressões que consumimos são claramente violentas e escuras, talvez possamos entender porque não atingimos paz e luz. Ao mesmo tempo, podemos questionar porque preferimos essas sensações mais fortes, normalmente porque nossa mente está dominada por Rajas ou Tamas. O mesmo se aplica ao significado de Ahara como relações, já que estas também nos alimentam emocionalmente. Muitas vezes entendemos o caminho espiritual como o da renúncia, mas talvez essa seja somente uma das possibilidades. Tal como durante nossa prática podemos escutar e ver a pessoa do lado se movimentando e respirando sem que isso nos incomode, também podemos nos relacionar com os outros de forma a não sermos levados por seus dramas, problemas e questões. Isso não significa que nos deixemos de importar com os outros, mas que não permaneçamos em relações e situações tóxicas, tão densas quanto o filme mais violento ou a música mais agressiva, incapazes de gerar luz ou paz.

Quando acalmamos a sede de estímulos dos sentidos e mente, observamos e escolhemos as impressões com que nos alimentamos, Buddhi ganha finalmente o controle das rédeas e dos cavalos. Sendo Buddhi o intelecto superior, a parte da mente mais em contato com o Todo, é naturalmente na direção da luz, do essencial e do divino que guiará a carruagem. No Baghavad Gita é dito que Pratyahara é como uma tartaruga recolhida na sua carapaça. Ou seja, agora os sentidos são virados para dentro. Mas estes não deixam de funcionar. Os estímulos continuam chegando, simplesmente nossa mente não está mais condicionada por eles, permanecendo focado no nosso interior.

10259978_10201802387561854_8036094774768705609_nComo dito antes, Pratyahara é a ponte entre os quatro primeiros Angas e os três últimos, não sendo totalmente uma ação externa e voluntária nem somente algo espontâneo e interno. Ou seja, que podemos fazer nossa parte, trabalhando nessa auto-observação e descondicionamento, e embora haja alguns exercícios de Pratyahara, o verdadeiro controle dos sentidos requer tempo e maturidade. Porque embora os oito Angas estejam interconectados e não sejam algo que simplesmente vamos ultrapassando e deixando para trás, a ordem pela qual estão descritos tem um sentido. Em cada Anga, vamos refinando nossa consciência e percepção, trazendo nossa atenção para aspetos cada vez mais internos e sutis: começamos com a nossa relação com o mundo nos Yamas, observamos condutas pessoais com os Niyamas, ganhamos estabilidade e conforto no corpo físico com os Asanas e começamos a controlar respiração, logo a mente e energia vital com o Pranayama. O que isso cria? Uma tranquilidade que nos permite chegar a lidar com algo tão sutil e ao mesmo tempo tão volátil como os sentidos. Por isso, para chegar a Pratyahara é necessário estar estabelecido primeiro nos Angas anteriores. É difícil trazer para dentro os sentidos se nosso corpo reclama de dor depois de sentar uns minutos na mesma postura, ou se nossa respiração corre ofegante, descontrolando a mente. Mas se vamos colocando com coerência e firmeza nossos pés em cada degrau do Ashtanga Yoga, chegamos naturalmente a Pratyahara. O que pode acontecer até em plena prática de Asanas. Nela, temos o dhristi para dirigir nossa visão, a respiração Ujjayi nossa audição, o movimento e Bandhas nossas sensações táteis. O que acontece então? Nossos sentidos e logo nossa mente estão tão focados nesses pontos, tão virados para aquilo que acontece com nosso corpo e dentro de nós, que aquilo que acontece ao nosso redor não nos desconcentra mais. Nossa mente está subitamente liberada dos condicionamentos criados pelas impressões trazidas do exterior e nessa liberdade Dharana, Dhyana e Samadhi podem por fim acontecer.

Talvez ao inicio, quando começamos a ler e escutar sobre Yoga e como controlar corpo, mente, respiração, sentidos ou ações, fiquemos com a sensação que esta é uma disciplina austera, em que esses aspetos devem ser calados ou contidos. Pelo contrário, se trata de conhecer cada um deles para poder encontrar mais facilmente o que já está dentro de nós, nossa verdade essencial. Pratyahara se torna assim um passo fundamental no caminho até a liberação, quando conseguimos fazer dos sentidos nossos aliados para enxergarmos nossa verdadeira luz.

Texto de Olga Rodrigues
Imagens de Kike Krueger & Marza Tozo