fbpx

Os Cinco Koshas

Os Cinco Koshas

Os Cinco Koshas 1600 1065 Kaka

Somente o ser humano se questiona: quem sou eu? Um animal não se pergunta isso. Ele simplesmente vive e aceita aquele corpo, seus instintos e necessidades. Em algum ponto da história humana, começou esse olhar para si mesmo e sentir que existe algo mais do que o corpo, os pensamentos, os sentimentos. De onde terá vindo esse primeiro lampejo de consciência assomando na mente humana? Foi certamente um passo em frente na evolução, mas essa questão trouxe consigo alguma inquietação, uma necessidade de buscar algo mais. Por ser tão difícil de responder, nosso instinto foi procurar fora. Muitos sábios discorreram e se questionaram partindo dessa mesma pergunta, tentando definir o indefinível. Muitos artistas tentaram expressar através de tintas, palavras, esculturas e tantos outros meios, esse vazio existencial que tantas vezes não nos deixa dormir. Porque se não sei quem sou, não sei o que faço aqui.

Porque o curioso é: nos identificamos totalmente com corpo, mente e papéis sociais, com os heróis (ou vilões) de histórias pessoais que nós mesmos narramos. Mas ao mesmo tempo em que nos vamos apoiando nessa estrutura ilusória, algo dentro de nós nos diz que não é bem isso. Isso nos causa um senso interno de dualidade e divisão, como se estivéssemos constantemente escutando uma história mal contada, mas em que queremos forçosamente acreditar. E aí começamos a procurar, cada um de forma diferente. Assim muitos de nós chegamos ao Yoga, como forma de nos sentirmos “melhor”. Porque mesmo que seja por uma questão física ou emocional, no fundo o que queremos sempre é uma resposta para acabar com o sofrimento. Intuitivamente, sabemos que este não nos pertence, mas simplesmente não nos conseguimos livrar dele sem ajuda. Essa pergunta eterna que nos faz duvidar se estamos pisando em terreno firme ao acreditar em todas as nossas identificações, que de alguma forma a prática parece ajudar a dissipar, é que nos faz voltar dia após dia. Mesmo que as posturas nos pareçam loucas, a série impossível de decorar e a mente difícil de calar. Porque também em nós surge esse lampejo de consciência que nos diz que há algo mais além do mundo externo e material, vamos respirando, observando, limpando, desvendando as camadas que cobrem nosso verdadeiro Ser.

Mas esse caminho até nossa essência pode-se fazer de diferentes formas. Sri Ramana Maharshi enfatizava a meditação do tipo Vichara, interrogação, em que vamos nos perguntando: eu sou isto? E por exclusão vamos retirando aquilo que não somos. Esse processo pode ser chamado de neti neti, “nem isto, nem isto”. Não sou o meu corpo, não sou o meu pensamento, não sou o meu nome, não sou a minha profissão… E por aí fora, até chegarmos a algo que não deixe espaço para dúvidas. Mas para excluirmos algo e podermos afirmar com certeza que não somos aquilo, precisamos conhecê-lo. É isso que fazemos na nossa prática diária. Por isso passamos tanto tempo nos observando. Como está meu corpo hoje? Que sensação é essa? É dolorosa ou prazerosa? Como está minha mente? Porquê uns dias ela fica tranquila e me deixa praticar em paz e outras me faz esquecer tudo, me leva para mil lugares que eu não queria ir? Nosso verdadeiro Ser é ilimitado, então ele toma a forma que lhe dermos. Por isso precisamos ir purificando os vários invólucros e moldes para entender sua realidade ilusória. Precisamos observar e conhecer para saber como os transcender.

Partimos do corpo físico, mas podemos chegar a purificar até as camadas mais sutis. Estes diferentes corpos recebem o nome de Koshas e são cinco. São como vidros, em que se o primeiro está sujo de nenhuma forma conseguimos enxergar o último. Essa sujeira não é mais do que a soma de todas as cores que fomos dando as diferentes situações da vida e acumulando nos diferentes Koshas.

1959368_10201802357841111_8577971993087272375_n

Annamaya Kosha é o corpo físico. Anna significa comida, porque é disso que ele é composto. Todos os dias aquilo que comemos nutre nossa células, que se renovam a partir dessa nutrição. Pensando que este corpo é formado pelo que comemos e digerimos, se entende porque a alimentação é tão importante se queremos começar purificando os Koshas. Para além de predominantemente sátvica, ela deve ser adequada a nossa constituição, mas também à nossa capacidade de digeri-la. Ama, o conjunto de biotoxinas que está na origem de muitas doenças, se acumula quando comemos algo que não podemos digerir. Quando temos muito Ama, nos sentimos pesados, acordamos com dificuldade, as articulações doem. O interessante é que ao praticarmos todos os dias e observarmos o efeito dos alimentos que consumimos no dia anterior, acabamos por fazer escolhas e mudanças na nossa alimentação cada vez mais adequadas. E o melhor é que essas mudanças são normalmente graduais e suaves, porque acontecem de dentro para fora e não baseadas em opiniões exteriores, com as quais nossa razão pode até concordar, mas nossa vontade não. Ao mesmo tempo, quando esquentamos, torcemos, alongamos e massageamos nosso corpo com a prática, vamos removendo parte de Ama. Como equilíbrio gera equilíbrio, ao estarmos menos intoxicados, optamos por alimentos mais adequados.

A Primeira Série do Ashtanga Yoga recebe o nome de Yoga Chikitsa ou terapia porque atua primeiramente no corpo físico, entre outras coisas, aumentando o calor e a circulação sanguínea e linfática para todos os pontos do corpo, massageando áreas que antes ficavam inertes. No livro Yoga Mala, Sri K. Pattabhi Jois faz uma descrição detalhada sobre os benefícios de cada postura desta série. A ideia é deixar este corpo livre de doença e dor, para que o espaço que estas ocupariam seja utilizado para a concentração e meditação. Quando nosso corpo físico sente desconforto, toda nossa atenção é tomada por ele. Quando este está equilibrado e em harmonia, podemos então começar a purificar as camadas seguintes.

Pranamaya Kosha é basicamente o corpo energético. Composto por Prana, energia vital, é purificado através de Asana e Pranayama. Os seus canais, chamados nadis, recebem especial atenção na Segunda Série, em sânscrito, Nadi Shodhana, que significa exatamente purificação desses canais. O seu canal principal, o Sushumna, segue a coluna vertebral, tendo dois canais secundários que o acompanham: Ida (Lunar, esquerdo) e Pingala (Solar, direito). Os pontos de interseção desses dois canais são pontos especiais de energia, os conhecidos Chakras. Este corpo está entre o físico e o da mente, fazendo a ligação entre os dois, o que é facilmente observável numa prática de asanas. O Prana tem uma relação especial com a mente e para onde vai um segue o outro. Podemos ter certa região bloqueada, por exemplo sentindo resistência a que se abra. Se tentarmos forçar através da força física, provavelmente causaremos uma lesão. Mas quando levamos nossa atenção, sem julgamento, para aquela região, o Prana segue, podendo fazer a energia fluir. Isso pode trazer à tona diferentes emoções e por isso é comum para quem está começando as retroflexões profundas da Segunda Série ter manifestações diversas desse desbloqueio, como choro ou pesadelos. Como sempre, vale não racionalizar em excesso e se entregar ao que está acontecendo, lembrando que cada um é um indivíduo diferente e reagirá de forma diferente. Os Bandhas são mais um exemplo dessa ligação entre esses três corpos. Se ao inicio usamos muito a contração muscular para alcançar esses nós, aos poucos, colocando nossa atenção neles, podemos sentir como a força física vai diminuindo e se torna uma contração sutil, energética. Fechando o Mula Bandha, interrompemos o desperdício de Prana pelo Apana Vayu. Pelo Udhyana Bandha expandimos nossa capacidade torácica, fazendo com que o Prana seja distribuído por todo o corpo energético a partir da região do Anahata Chakra, o coração espiritual.

_92A6681

O Manomaya Kosha é o corpo da mente, pelo qual em vez de sangue e linfa fluem pensamentos. Também aqui ficam guardados samskaras, impressões passadas que se foram acumulando por um denominador comum, influenciando tendências de comportamento, os vasanas. Porquê quando escutamos alguém falar de bolo de chocolate nos dá vontade de comê-lo? Porque essas três palavras nos lembram todas as vezes que comemos e foi prazeroso, reavivando esse samskaras. Ou não, pode ser que elas estejam associadas a uma memória de um bolo que nos deu dor de barriga e somente menciona-lo nos enjoa. Seja como for, nossa tendência automática é a de persistir no agradável e rejeitar o desagradável, segundo nossas impressões anteriores e prevalentes.

Tal como nosso corpo físico é composto por aquilo que conseguimos digerir, também o corpo mental vai sendo formado por aquilo que vamos digerindo, aquilo que vamos percebendo do mundo exterior e aquilo que vivemos nele, fazendo nosso próprio conjunto de memórias sensoriais, emocionais e intelectuais. E tal como existe Ama físico também existe Ama mental, pegajoso e difícil de eliminar, obstruindo os canais deste corpo, o fluxo do pensamento claro. Assim, a partir das impressões percebidas, como as digerimos e guardamos, são gerados padrões de comportamento. Um dos presentes recebidos ao praticar Yoga é a crescente consciência desses padrões, o primeiro passo para conseguirmos ultrapassá-los.

A purificação dos Koshas anteriores contribui grandemente para o alcançarmos. Bloqueios energéticos e físicos podem ser como muros que não nos deixam ver mais adiante, mesmo que queiramos muito. Além disso, na pratica de asanas e Pranayama, temos diversas oportunidades para observarmos como esses padrões surgem. A competição com o colega do lado, a frustração de não conseguir chegar no nosso ideal de um asana, o ego vibrando porque conseguimos chegar dois centímetros mais longe, a vontade de desistir no meio, são apenas algumas tendências que podem surgir. Na verdade surgem várias vezes durante nosso dia, mas nem sempre nos damos conta, porque passamos muitas vezes a correr. A ideia é que com atenção e amor consigamos cada vez mais eliminar os samskaras que nos causam sofrimento.

Vignamaya Kosha é o do intelecto, da inteligência sutil. Aqui se alojam os samskaras e o Karma mais profundos. Praticando, estamos despertando o poder do intelecto, sem a qual não podemos desvendar essa trama intricada de samskaras e vasanas. Só a luz de Buddhi pode iluminar as caixas empoeiradas onde guardamos impressões e tendências profundas, num canto escuro de nosso ser. Mas para que Buddhi se manifeste e prevaleça sobre a vontade do ego, seus apegos e aversões, é necessário que Sattva domine sobre a mente. Por isso são tão importantes as ações de purificação dos Koshas anteriores, para criar o espaço e a luz necessárias para termos Viveka, discernimento.

O último Kosha, Anandamaya Kosha, é o chamado corpo causal, a alma que causa a individualidade especifica com que cada um de nós vem nesse mundo. Sendo o último, o mais sutil, é o que está mais perto de Purusa, em direto contato com o Absoluto. Dá origem aos outros Koshas e o último a ser dissolvido quando se morre. Ananda pode ser traduzido como bem-aventurança, um estado de felicidade, paz e tranquilidade, que seria a matéria que compõem este corpo. Experienciar esse estado, um tipo de Samadhi, só é possível quando os Koshas anteriores estão purificados.

No fundo, este é um processo de Kriya Yoga tal como descrito no primeiro sutra do Sadhana Padha, o segundo Capítulo dos Yoga Sutras, por Patanjali. Kriya significa ação e envolve Tapas, Svadhyaya e Ishvara Pranidhana. Com Tapas, o calor da autodisciplina, muitas vezes traduzido como austeridade, não só fazemos o sangue circular mais fortemente, limpando nosso corpo físico de maus hábitos, como queimamos as sementes dos samskaras para que não germinem mais. Mas essa austeridade não é gratuita, não vem para nos causar dano ou reprimir. Muito pelo contrário, é uma autodisciplina que nos ajuda a seguirmos mais facilmente naquele caminho que escolhemos. Por exemplo, queixamo-nos que não temos tempo para praticar, que queremos acordar cedo, aproveitar mais o dia, mas não conseguimos. Tentamos uma vez mas na manhã seguinte já deixamos nossa tendência de acordar tarde por anos ditar. No terceiro dia nos arrependemos e voltamos a colocar o despertador para cedo, para no quarto esquecer da decisão na hora que a preguiça fala mais alto. E a verdade é que cada vez que cedemos faz com que na seguinte custe mais ainda. Mas o que por vezes não vemos é que mais do que a hora que acordamos ou não, o que causa o sofrimento é essa indecisão, esse constante alternar entre nossos valores e nossos condicionamentos. Usando o fervor de Tapas, podemos nos disciplinar para acordar mais cedo por um tempo, até que um belo dia descubramos que isso não nos exige mais esforço, passando a acontecer naturalmente. Claro que isso não vem sozinho. Ter os Koshas livres de Ama físico, mental e energético é fundamental para conseguirmos permanecer firmes em nossas escolhas. No fundo, a vida é feita de ciclos, de ações e consequências que quanto mais estão em sintonia e de acordo com um propósito, mais força nos dão para irmos em direção a esse propósito.

Svadhyaya se trata exatamente de auto estudo, auto-observação e conhecimento. Entender como nossos corpos funcionam serve para saber como manejá-los, como transformá-los, como não deixar que nos dominem. Como dito antes, serve também para entendermos o que não somos. Se me apego a ideia que sou aquela pessoa que acorda tarde, se eu mesmo coloco esse limite estanque, dificilmente só com Tapas sairei da cama. Mas se entendo que não sou essa preguiça, fica mais fácil agir de acordo com os valores em que realmente acredito. Svadhyaya também é o estudo de escrituras e livros sagrados, o que não deixa de ser um estudo sobre nós mesmos, ou não fossem estes universais.

V

Com Ishvara Pranidhana, temos a oportunidade de purificar todos os corpos, do mais grosseiro ao mais sutil. Porque no fundo, só sofremos quando não nos entregamos ao fato que existe uma lei maior, porque nosso ego sempre espera algo em troca, mesmo que tenha propósitos aparentemente superiores. Se eu vier todos os dias vou conseguir fazer drop-back sozinho? Se eu fizer Pranayama vou ter uma mente mais calma? Se eu praticar por anos vou viver mais anos? Se eu meditar vou me iluminar? Dificilmente fazemos algo sem nos apegarmos ao resultado. E esse resultado não pode ser qualquer um, tem que ser o que imaginámos, segundo nossa visão limitada da coisa. Exatamente porque avidya nos domina, a ignorância sobre quem realmente somos. Então nos apegamos a tal estrutura ilusória que falávamos no inicio. Se pudermos entregar tudo a Ishvara entendendo que não somos mais do que parte desse Todo, purificamos nossas ações, nossos corpos, nossos samskaras mais profundos.

Assim, dizemos que Yoga é um caminho de purificação, camada por camada. Mas purificar não é lavar. Qual a melhor maneira de fazê-lo? Entregando-o ao fogo. Ao contrário de algo que lavamos e mantemos intacto, quando o fogo toca em algo o liquefaz, modifica sua forma. Não sabemos como aquilo que entregamos ao fogo divino vai sair, não queremos oferecer por medo da perda, por apego. Mas se nosso desejo por liberação é intenso, estamos disposto a deixar que todos nossos Koshas sejam transformados pela chama da Consciência. Isso só pode acontecer quando confiamos plenamente no Universo, quando sabemos que o que tem de ser será, independentemente de nossa vontade. Por isso que, mais que tudo, o Yoga é então, um caminho de entrega e aceitação.

Texto de Olga Rodrigues
Imagens de Karim Rojas, Marza Tozo e Kike Krueger