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Samyama: Dharana, Dhyana e Samadhi

Samyama: Dharana, Dhyana e Samadhi

Samyama: Dharana, Dhyana e Samadhi 1280 854 Kaka

Podemos ver o Ashtanga Yoga como um caminho de oito passos, com um final onde queremos chegar. Mas que destino é esse, se não a verdadeira sabedoria, conhecer quem somos realmente? Será que estamos indo realmente a algum lugar? Ou apenas descobrindo, no sentido de retirar aquilo que cobre nossa essência? Como se, através do discernimento adquirido pela prática, fossemos removendo as diferentes roupagens que vestem nosso verdadeiro Ser.  É um processo de limpeza, aprimoramento e entendimento dos diferentes aspetos da nossa vida. Começamos pelos externos, como relações com o mundo pelos Yamas, com nós mesmos através dos Niyamas, com nosso corpo físico pelos Asanas, respiração por Pranayama e sentidos por Pratyahara. Até que chegamos á parte mais interna dessa prática, chamada de Samyama e que inclui Dharana, Dhyana e Samadhi. Esses são três aspetos da meditação, como três fios numa trança, em que não conseguimos falar onde exatamente começa um ou outro. Se os separamos é sobretudo para um melhor entendimento.Hoje em dia, a palavra meditação é muito usada, mas o que significa realmente? Sentar em silêncio, com os olhos fechados? Sem nenhum tipo de preparação, esse é o cenário ideal para que comece um diálogo interno, uma batalha sem cessar entre nossa vontade de meditar e nossos pensamentos sem controle. Exatamente por isso, precisamos dos cinco Angas anteriores, para purificar nossas ações, corpo e mente. Claro que sempre é valido sentar e observar nossa mente, nem que seja para nos darmos conta de como esta é tumultuada e de quanto trabalho ainda temos pela frente se realmente a queremos acalmar.  Mas Samyama não é algo que simplesmente possamos sentar e fazer porque o decidimos. Não é uma técnica, mas algo que precisa acontecer naturalmente. Uma melhor tradução poderia ser integração, união. Mas do quê com quê? De nossa identidade pessoal com o objeto escolhido, do eu individual com o Eu absoluto. Parece muito abstrato, mas fica mais claro quando compreendemos suas três partes.

Dharana, ou concentração, é feita quando conseguimos focar num objeto, mas ainda de forma intermitente e variável. Temos percepção do que se passa ao nosso redor e afloram pensamentos que requerem certo esforço para serem afastados, ás vezes até sobre diferentes aspetos do objeto no qual nos concentramos.  Surge quando algo prende a nossa atenção, como quando aprendemos a tocar um instrumento musical. Na prática de Asanas é muitas vezes atingido, quando estamos totalmente concentrados nos diferentes aspetos da postura ou da respiração.

Dhyana, também traduzido como foco contínuo, acontece naturalmente quando a concentração se alonga e os pensamentos deixam de aparecer. É muitas vezes comparado a um fluxo de óleo, que corre sem interferências.  Também pode surgir em plena prática de Asanas, quando nos tornamos um com a postura. Pode reverter para Dharana, quando, por exemplo, nossa atenção vai para o colega do lado.

Samadhi é um estado de total absorção pelo objeto, em que perdemos nossa identidade pessoal. Inclusive, Patanjali diz que nele, aquilo que é compreendido, o objeto de compreensão e aquele que compreende se tornam um. Tal como Dharana e Dhyana, pode acontecer com diferentes objetos e não somente quando se pratica Yoga. Quando nos perdemos olhando um pôr-do-sol magnifico, quando temos essa sensação de total comunhão com outra pessoa, quando sentimos que deixamos de saber quem somos, num trance hipnótico. A verdade é que passamos por diferentes samadhis na nossa vida, mas são breves, efêmeros e muitas vezes com qualidades baixas, como um estado de consciência alterado induzido por drogas. Para o praticante de Yoga, interessa o Samadhi que traz sabedoria, clareza e luz, característicos de Sattva. Como só semelhante pode gerar semelhante, tal é impossível se usarmos objetos rajásicos ou tamásicos. 

Por isso, essa ideia de que o objetivo do Yoga é parar a mente pode confundir muito ao início. Para quê tantas horas de prática, tanto estudo, tanta dedicação para algo que se parece conseguir quando se está absorto em algo, quando se toma um entorpecente? Sim, Yoga é “citta vrtti nirodhah”, a cessação das flutuações da mente, mas não pela mera conquista de dominar a mente ou por chegar a conseguir não pensar em nada, só por si. Tornar a mente calma como um lago em dias sem vento não é um fim em si mesmo, embora seja realmente difícil de alcançar. O que nos importa é o reflexo da luz do Absoluto nesse espelho, que as ondas dos vrttis não nos permitem enxergar normalmente. Trata-se de procurar Rtambhara Prajna, a sabedoria luminosa, pura e verdadeira, que Patanjali diz que vai muito para além do conhecimento obtido em livros e que inicia uma nova vida, em que os samskaras antigos (impressões) são deixados para trás e novos são evitados. Ou seja, a sabedoria que nos permite romper com padrões de comportamento, que muitas vezes nos levam a agir automaticamente, sem benefícios para ninguém. Por isso esse Samadhi sátvico só pode ser atingido por Abhyasa e Vairagya, prática e renúncia. Sem atalhos, sem apegos ou distrações.

Patanjali distingue quatro estágios desse tipo de Samadhi alcançado por Abhyasa e Vairagya. Vitarka é o Samadhi que vem do estudo analítico de um objeto, como pode ser uma imagem, um mantra ou mesmo a respiração. Em Vichara a contemplação é mais sutil, podendo partir desse mesmo objeto mas focando na sua essência. Daí se passa para Ananda Samadhi, em que se é absorvido por um estado de bem-aventurança, felicidade ou jubilo, que advém da total dissolução até dos aspetos mais sutis contemplados em Vichara. Em Asmita, podemos por fim experienciar nossa verdadeira identidade, nosso Ser. 

Mas até aqui ainda falamos de uma conquista da mente através da mente, o chamado Sabija Samadhi. Sabija significa com semente, que nesse caso é um objeto de foco. Segundo Patanjali, com confiança e vigor, o praticante pode alcançar o estágio máximo: Nirbija Samadhi. Neste Samadhi sem semente, sem objeto de foco, toda a matéria, Prakritti e consequentemente todos os gunas, inclusive Sattva, são transcendidos. É extremamente complexo falar de Nirbija Samadhi, porque é tentar explicar e compreender através do intelecto algo que vai muito para além dele. Nossa identificação com a mente é tão forte que nos ultrapassa conceber um estado em que suas formas de expressão, os pensamentos, estejam ausentes. 

Blog 25 (3)Mas Patanjali dá uma esperança. Ele diz que Samadhi está mais facilmente ao alcance daqueles que são extremamente vigorosos e intensos na prática. Isso não significa uma prática de Asanas ou Pranayama avançados, mas uma total integração de todos os Angas, inclusive Yamas e Niyamas. Pouco vale praticar três horas de asanas belos e complexos se não fazemos das vinte e quatro horas do dia, de toda nossa vida e seus múltiplos aspetos, uma prática de Yoga. Até porque o significado de Abhyasa é uma prática constante e sem interrupções, ou seja, que de nenhuma forma pode ser algo que limitemos a um determinado espaço ou tempo.  Relações familiares, amorosas ou de amizade, desafios e obstáculos diários a nossa autodisciplina e valores, a forma como cuidamos, nutrimos e respeitamos nosso corpo e mente, como interagimos com o ambiente em que estamos, tudo são oportunidades para chegarmos mais perto de nossa essência, usando a pureza da mente que queremos cultivar com o Yoga.  

Patanjali diz ainda: Ou, podemo-nos entregar a Ishvara. O uso da palavra “ou” (“va”, em sânscrito) já nos traz muito do sentido desse sutra. Porque afinal, se conseguíssemos apenas nos render á vida tal como ela é, sem querer constantemente controla-la, se pudéssemos chegar num tal estado de aceitação que nosso ego não quisesse mais ditar como tem que ser o mundo, se tornaria incrivelmente simples acalmar chitta e enxergar nosso verdadeiro Eu. Se estivéssemos entregues a Ishvara, aquele que é livre de limitações, iríamos para além de nossa própria limitação, das nossas fronteiras imaginárias, criadas somente por nossa mente. Para preencher um vazio existencial que nos assusta, vamos nos identificando com as diferentes projeções dessa mente, tentando compor uma identidade através daquilo que nos atrai ou repulsa, num jogo constante de “isto sou eu”, “isto não sou eu”. Construída essa identidade, nos apegamos a ela como se nossa vida dependesse disso, seguindo pelos mesmos caminhos uma e outra vez, mesmo quando sabemos que no final só nos causam sofrimento. Julgamos que estamos controlando, exigindo que a realidade se conforme à nossa vontade, mas na verdade somos nós os dominados. É o apego a essas falsas identificações que não nos permite simplesmente entregar os resultados de nossas ações a Ishvara. E também por ele, acabamos por precisar de toda essa prática, expressa nos cinco primeiros Angas. Como se fossemos crianças perdidas, a prática de Yoga nos leva pela mão, trazendo-nos constantemente para nosso rumo, lembrando-nos que não há porque causar dano, mentir ou roubar o outro, descuidar do nosso corpo e mente, se afinal tudo é apenas uma expressão de Ishvara.

 Isso nos leva de novo a Dharana, Dhyana e Samadhi. Porque precisamos inicialmente de uma semente, um objeto de foco, se a ideia é diluir nossa identidade em algo maior? Exatamente porque estamos tão identificados com nossas próprias limitações que se torna inconcebível percebermos nossa infinitude. Ao contemplarmos um objeto externo, concentrarmos toda nossa atenção nele até transcendermos seus aspetos mais grosseiros e depois até mesmo os mais sutis, chegamos na sua essência. Percebendo então o que realmente É, reconhecemos que também o somos. Dissolve-se assim nossa falsa ideia de separação e chegamos à Unidade. Porém, palavras podem-se tornar obstáculos quando queremos definir o indescritível. É querer mais uma vez delimitar o infinito. Afinal, Yoga é experiência, a teoria é apenas uma base para melhor fundamentarmos nossas práticas em nossas vidas. Saber mais sobre Samadhi pode nos ajudar a desmistificar esse estado mas não nos leva lá. O caminho se faz caminhando, com Abhyasa, mas também deixando para trás o que nos pesa e não serve mais, com Vairagya. Ao mesmo tempo precisamos cultivar Ishvara Pranidhana, fazendo de cada passo uma oportunidade de aprender a entrega e aceitação.

Texto de Olga Rodrigues

Imagens de Taeko