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A Mente e o Yoga

A Mente e o Yoga

A Mente e o Yoga 150 150 Kaka
Muitos de nós chegamos à nossa primeira aula de Yoga pensando na imagem típica do Yogi sentado tranquilamente meditando, com um leve e plácido sorriso no rosto. A representação perfeita da definição de Yoga contida nos Yoga Sutras: citta vrtti nirodhah, uma mente sem flutuações.  Mas logo nos deparamos com outra realidade: aquele monte de gente se torcendo em posições estranhas do nosso lado, nosso corpo reclamando de desconforto, o professor que diz para respirarmos e a dificuldade em fazê-lo. Quando finalmente sentamos, descobrimos que esvaziar a mente parece impossível. Os problemas do trabalho, as coisas para fazer em casa, as contas, os filhos, o que fazer no almoço.  Os pensamentos voando, num fluxo tumultuado, sem controle. Então, a tal da mente sem flutuações parece apenas uma piada. Á medida que o Yoga toma conta de nossa vida, que nos dedicamos mais e mais, que a disciplina se torna natural e nosso corpo se vai desintoxicando, também nossa mente parece ficar mais leve e clara. Damos por nós reagindo melhor às situações do cotidiano, lidando mais facilmente com nossas emoções. Mas será que realmente o Yoga de cada dia nos ajuda a chegar a citta vrtti nirodhah? Como nossa prática influencia a mente?
Antes de qualquer coisa, precisamos entender esse conceito de mente, que pode ser dividido em três componentes: Manas, Ahamkara e Buddhi. Se pensarmos nos três como camadas, Manas seria a mais orgânica e mais próxima do corpo físico. Recebe as impressões trazidas pelos órgãos dos sentidos, analisando, classificando e identificando objetos. É Manas que coloca várias opções e dúvidas entre elas, sustentando o diálogo interno que parece não ter fim dentro das nossas cabeças. Isso em si não seria um problema, se conseguíssemos não nos identificar com esse fluxo de pensamentos. Aí entra Ahamkara, o Ego, a individualidade. É ele que inicia a identificação com os pensamentos sustentados por Manas, se apegando aquilo que causa prazer, classificando como o que gosto (raga) e rejeitando aquilo que causa sofrimento ou desconforto, classificando como aversão (dvesa). Isso é crucial para construirmos nossa personalidade única, que é afinal o conjunto de todos esses gostos e aversões, interesses e particularidades. A diversidade é importante e enriquecedora, afinal, é muitas vezes nos encontros com pessoas diferentes de nós mesmos que evoluímos e crescemos. Se fossemos desprovidos de Ego e individualidade, esse enriquecimento mútuo não seria possível. 
Para além disso, o grande paradoxo de Ahamkara é que, apesar de nos dar a falsa ilusão de que somos seres separados do resto, é o que nos faz ir em busca do conhecimento e da Unidade. Se o Ego não está presente ou é fraco demais, que razão temos para nos alimentar, para tomar água, para nos cuidarmos? É ele que diz “eu quero me sentir melhor”, “quero saber mais sobre esse tal de Yoga”, “isso vai me fazer bem” ou “isso vai me fazer mal”. O problema é que ele e Manas se apegam ao que já está estabelecido como prazeroso e confortável, rejeitando o desconhecido, segundo os samskaras adquiridos durante todas nossas vidas. Estes são impressões guardadas no nosso corpo mental, que nos condicionam a tomar sempre os mesmos caminhos, a agir automaticamente por padrões repetidos continuamente. Vejamos um exemplo simples: imaginemos que durante nossa infância criamos o samskara de aversão á couve e construímos a identificação de “eu sou uma pessoa que não gosta de couve”, não comendo nunca esse vegetal. Mas, em adultos, na nossa busca por uma alimentação mais natural, nos propomos a provar um prato com couve e descobrimos que afinal gostamos. Nesse momento, quebramos o padrão de rejeição da couve. Se apenas seguíssemos nosso condicionamento, ou seja, se apenas escutássemos Manas e Ahamkara, isso nunca aconteceria. 
O mesmo pode acontecer com nossa prática. O samskara da cama quente pode pesar mais ao inicio na hora de levantar. Manas se revolta imediatamente com a ideia de ter que sair da preguiça mental de não ter que focar em nada, Ahamkara traz as identificações com o prazer da cama, com o hábito adquirido durante anos de se levantar tarde.  Mas depois de algumas vezes fazendo o esforço de levantar, Manas descobre que afinal praticar não só traz tranquilidade como nos faz sentir melhor durante o resto do dia. Logo Ahamkara se identifica com isso e o samskara do beneficio da prática começa a pesar mais. Mas para conseguirmos chegar até aí, precisamos que Buddhi assuma o comando. Esta é a parte mais superior da mente e mais em contato com o divino, é o intelecto, a capacidade de discernimento, que, quando forte, nos leva a escolher pelo que é melhor para nós e para os outros. Se Manas é quem duvida entre a opção da cama quente ou ir praticar e Ahamkara se identifica com a preguiça ou a disciplina, Buddhi é quem opta por sair.
 Ou seja, em si, realmente Manas e Ahamkara, ragas e dvesas, assim como samskaras, não têm nada de errado e são necessários. Já que não conseguimos eliminar de uma vez por todas as identificações, podemos começar por nos identificarmos com coisas que eventualmente nos façam bem, para talvez um dia conseguirmos desapegar delas. Afinal, até para chegar a Samadhi é preciso que um dia esse desejo nasça em Manas e seja tornado nosso por Ahamkara. No fundo, estas duas partes da mente são como crianças que querem sempre ser distraídas e agradadas. Por isso, se torna tão importante uma prática diária, em que consigamos observar seus padrões e condicionamentos. Como podemos educar uma criança para quem olhamos realmente apenas uma vez por semana ou uma vez por mês? 
Quando acontece de sabermos que algo não é bom para nós (seja uma comida, um hábito ou mesmo uma relação) e mesmo assim Ahamkara e Manas, as duas crianças teimosas insistem e conseguem ir pelo mesmo caminho de sempre, “contra nossa vontade”, é sinal que Buddhi está fraco. Se pensarmos na mente como um lago, Buddhi é a superfície que reflete o céu, ou seja, o Absoluto. Por isso, Buddhi traz consigo a sabedoria do Universo e suas leis, ajudando-nos a agir de acordo com elas, ou seja, pelo Dharma. Mas isso nem sempre acontece, porque o lago está tão mexido que não pode refletir nada, cheio de flutuações criadas por Manas e Ahamkara. Conhecendo a mente e seus padrões, podemos começar a diminuir esses altos e baixos. 
Ao mesmo tempo, ao realizarmos práticas como Yamas, Niyamas, Asanas e Pranayamas, muitas vezes sem sabermos, estamos ainda limpando a água desse lago, tornando-a menos densa e turva, ao aumentar Sattva e diminuir Rajas e Tamas. Estes três forças da natureza, chamadas Gunas,  influenciam diretamente o estado da nossa mente.  
Tamas é a mais densa das três, traz consigo a inércia, a escuridão e a ignorância. Quando ela prevalece sobre a mente, fica obscura, embotada e pesada.  Como consequência, as ações são feitas na maior ignorância, sem entendimento da lei de causa-efeito, sem considerar o que é mais adequado ou correto, tendo muitas vezes um caráter auto destrutivo. Nesse estado, a mente está tão densa que precisa de estímulos muito fortes, como música agressiva e  filmes violentos, com ênfase em temas como morte e destruição. A pessoa fica apática, estagnada e apegada emocionalmente, não conseguindo cuidar de si mesma ou mudar o que está errado, ainda que se queixe muito. Todas as drogas, mesmo as estimulantes, aumentam Tamas, assim como o consumo de certos alimentos como: carne, peixe, comida processada ou comer em excesso.
Rajas é a energia da mudança e do movimento, que dá o impulso para sair de Tamas e um pouco mais leve que esta. Ainda assim, as ações são motivadas somente por razões egoísticas e por isso mesmo, quando esta energia prevalece, as pessoas têm muita determinação, mas são impacientes, agitadas e extremamente competitivas. Os alimentos considerados rajásicos são alho, cebola, pimenta, café, chá, comida muito salgada ou muito quente. No entanto, isso não quer dizer que tenhamos que evitar completamente esses alimentos, já que são eficientes para balançar Tamas.
Sattva é a energia harmonizante, que traz luz, energia e amor. Quando Sattva prevalece, tendemos naturalmente ao equilíbrio e a paz, expressando qualidades como generosidade, honestidade e gentileza. O sabor doce, frutas, vegetais, grãos, sementes, lácteos e mel, quando frescos e preparados com amor e consciência, aumentam essa energia em nós.  Todas as práticas, como Pranayama, Asana e mantras, quando feitos com a atitude adequada, ou seja, fundados na base sólida dos Yamas e Niyamas, aumentam Sattva. Assim, não é de estranhar que mesmo sem nos apercebermos ou termos plena consciência disso, ao praticarmos com consciência, honestidade e respeito por nós mesmos e demais, aumentamos essa força dentro de nós e nossa mente fica mais clara. 
Felizmente, tal como podemos cair no ciclo vicioso de Rajas e Tamas, também podemos ascender ao ciclo luminoso de Sattva. Assim, vamos fazendo cada dia nossa prática, diluindo frustrações e expectativas. E Sattva começa a preencher nossas mentes, que passam a brilhar em todo seu potencial, não só nos ajudando a lidar com nós mesmos, mas também com as várias questões da nossa vida. Quanto mais Sattva, mais Buddhi se manifesta e mais Manas e Ahamkara cumprem sua função, sem nos controlar. Isso descomplica nossa vida, torna nossas decisões mais fáceis de tomar e nossas ações melhores para nós e para os outros.  Afinal, toda a ideia de aumentarmos Sattva e controlarmos Manas e Ahamkara não serve apenas o propósito de melhorarmos nossa vida exclusivamente, mas também a forma como nos relacionamos com o mundo.
Mas talvez um dos efeitos mais fortes do Yoga no nosso bem-estar mental venha de nos ensinar a viver plenamente o momento presente.  Asanas, Pranayamas e meditações como Japa, nos obrigam a focar naquilo que estamos fazendo ou perdemos o fio da meada, ao mesmo tempo em que nos dão oportunidade de aprender a receber os pensamentos sem que nos apeguemos. Por isso, no Ashtanga vamos ganhando posturas conforme nos estabelecemos naquelas que já fazemos, o que não significa alcançar a sua perfeição, mas sim conseguir respirar naturalmente, deixando que a energia flua. Estas vão se tornando cada vez mais difíceis, não para nos podermos exibir perante os outros, mas para trazer nossa consciência para o nosso corpo, para a alteração da respiração e nossas reações perante a dificuldade. Isso automaticamente nos puxa para o momento presente. Cada Asana conta assim uma história de superação dos próprios limites e de ganho de conhecimento sobre nosso corpo e mente. Ao sermos, através de todas essas práticas, levados a nos concentrar naquilo que acontece no agora, entendemos até onde vai nosso controle sobre o mesmo. O equilíbrio entre transformar o que está ao nosso alcance transformar e aceitar o que não podemos mudar, nos dá a capacidade de entrega e devoção pelo que É. Talvez essa seja a maior lição que podemos aprender com o Yoga.
Nossa prática realmente pode nos ajudar a ter uma mente mais calma, resistente e equilibrada, talvez um dia chegando a citta vrtii nirodhah. É como se cada dia limpássemos aquele lago, retirando os samskaras que causam flutuações, redemoinhos e correntes, ao mesmo tempo removendo todas as impurezas, para que água cristalina possa refletir aquilo que sempre esteve lá, mas não conseguíamos ver. Assim, relaxando na consciência de que somos também parte desse Absoluto, abandonamos por fim o sentimento de separação e isolamento que gera medos, ansiedades e depressões.
Texto de Olga Rodrigues
Fotos de Taeko