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Nyamas

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Com os Niyamas, seguimos nossa série sobre as oito partes do Ashtanga Yoga de Patanjali. Ao contrário dos Yamas, que guiam as relações com o exterior, os Niyamas nos dão a orientação quanto á relação conosco mesmos. São ações voltadas para o nosso interior, mas que facilitam a forma como nos movemos no mundo, abrindo caminho para os outros passos do Yoga. No Sutra 32 do Capitulo 2 dos Yoga Sutras, Patanjali cita os cinco Niyamas: Saucha, Santosha, Tapas, Svadhyaya e Ishvara Pranidhana.

Saucha
Refere-se à limpeza e pureza, tanto do corpo físico como da mente. Como em tudo, partimos do mais grosseiro para o mais sutil. Mas não se quer aqui pensar numa limpeza extrema, estéril. Pelo contrário, limpamos para uma maior consciência poder crescer, é uma ação positiva.
O corpo físico é a nossa casa neste mundo e através dele podemos experienciá-lo. Tantas e tantas vezes, as questões do corpo, como as doenças ou dores, não nos permitem estar em paz, fazem nos sofrer. É como uma casa entupida de coisas, acumulando poeira. A faxina é a parte difícil, mas depois desta logo nos sentimos mais aliviados, mais livres.  Então, preservar a limpeza do corpo, ainda que possa parecer uma preocupação extrema com o material ou supérfluo, é também um agradecimento por este organismo com que fomos presenteados. Em última instância, é também uma forma de aplicarmos os Yamas, respeitando os outros. Olhemos para a prática de asanas num Shala, como flui mais facilmente se os praticantes respeitam Saucha, tomando banho antes, cuidando da limpeza dos seus tapetinhos e suas roupas, evitando perfumes fortes. Isso torna mais leve o ambiente. É por respeitar Saucha, não do corpo, mas do lugar e consequentemente das pessoas que ali estão, que não devemos entrar de sapatos no Shala. Deixar as impurezas das ruas á porta é um gesto pequeno, mas com um grande significado de devoção pelo espaço sagrado de transformação que é um Shala.
No plano mais sutil da mente, Saucha é também fundamental, se queremos aumentar nossa capacidade de concentração e foco.  Se a mente é a lente pela qual captamos o mundo e se está cheia de poeira, é impossível enxerga-lo claramente, captamos somente uma imagem distorcida. Mas como limpá-la? Mais uma vez, através da observação dos nossos padrões, da forma como reagimos ao que nos rodeia. Por isso a prática de asanas é tão importante, ela pode ser um ponto de partida ótimo para esse caminho de auto conhecimento. No dia-a-dia, tendemos a alimentar padrões repetitivos e negativos, enchemos a mente com estímulos tamásicos e rajásicos. Logo, quando tentamos focar na respiração, dristhi e bandhas, descobrimos que milhões de pensamentos nos assaltam e interrompem, muitas vezes sem controle.  Á medida que a prática vai decorrendo, a mente fica mais clara, com menos oscilações e temos mais espaço para aproveitar o momento presente. Por isso nos sentimos tão relaxados depois. Limpamos nossa lente e o mundo parece mais simples.

Santosha
Significa contentamento, mas não aquele condicionado pelas situações que correspondem aos nossos desejos. Pelo contrário, é um contentamento perante a vida, em todas as suas nuances. Porque encaremos a realidade, para cada prazer há uma ilusão, uma expectativa e um desprazer no final, seja porque acabou seja porque a expectativa não foi correspondida. E nenhum problema em fazer coisas prazerosas, mas podemos não nos identificar com isso, de forma a que quando chegar o outro lado da moeda, não desesperemos. Quando estabelecemos Santosha dentro de nós, estamos satisfeitos com o que a vida nos traz. Precisamos reconhecer que o mundo não gira ao nosso redor, que se rege por leis universais e que nem sempre as coisas acontecem como preferiríamos. Porque vejamos: como poderia o mundo ser perfeito para todos, se a ideia de perfeição de cada um é diferente? Uma pessoa adora dias ensolarados e quentes, a outra prefere dias de chuva, mas a outra gosta de dias ventosos e frios. Como agradar a todos? E mais, a Natureza precisa de esses contrastes para funcionar. Então, Santosha requer a maturidade emocional de entendermos que o Universo não se conformará a nossa vontade e que não estamos sempre no lugar do condutor. Mas traz consigo a gratidão, uma forma de amor. Quando por exemplo, trazemos Santosha para a prática de asanas, paramos de querer chegar mais longe e de forçar o corpo a ir onde ele, simplesmente, não está preparado para ir. Aí sim, podemos agradecer, respirar e fluir, ganhando muito mais benefícios do que quando somente pensávamos na postura perfeita. 

Tapas
É muitas vezes traduzido como austeridade, mas a sua raiz traz a ideia do fogo que queima as impurezas e que ao mesmo tempo gera energia. Nenhum outro elemento tem a capacidade de transformar como o fogo. A água pode limpar, mas somente remove o que está a mais. O fogo liquefaz, molda, reduz ou dilata, podendo mesmo destruir. Neste sentido, é o fogo da autodisciplina, que torra as sementes dos samskaras, aqueles padrões que nos fazem agir condicionados por experiências anteriores, sem consciência ou atenção, e que parecem persistir mesmo contra nossa vontade, impedindo que estes germinem novamente. É o fogo da autodisciplina, que nos faz acordar antes do nascer do sol para praticar, que nos faz estudar sobre Yoga, que nos ajuda a purificar as nossas ações. É o fogo da vontade interior, aplicado positivamente. É também o calor produzido pelas práticas de Asana e Pranayama, que faz o sangue circular com mais força e eliminar bloqueios físicos, emocionais e energéticos.
É Tapas que leva a nos superarmos, sairmos da zona de conforto, conhecermos nossos limites, irmos um pouco mais além e descobrirmos que podemos dar muito mais. Mas claro, isso não significa nos colocarmos intencionalmente no sofrimento ou ignorar as dores que sentimos, sejam elas físicas ou emocionais. Todos sabemos que os momentos de crise são uma oportunidade enorme de crescimento, mas não por isso vamos provoca-los. Talvez esse seja mais um dos benefícios do Yoga, aprendermos a diferença entre dor e desconforto, tensão e atenção. Voltemos à prática de asana, se nos sentimos demasiado confortáveis nesta, é hora de avançar. Uma postura nova, se adequada, causa um desconforto saudável daqueles que obrigam a nos enfrentarmos. De repente, o ego diz que temos que conseguir chegar “lá” seja como for, a respiração fica ofegante, ao mesmo tempo sentimos medo e tensionamos o corpo, ocasionando dor e pensamos: “Mas eu já sabia que esse não era o melhor caminho?” E de novo, aprendemos a lição, que julgávamos aprendida. Só que cada vez avançamos um pouco mais nessa compreensão, entendemos melhor o nosso padrão. Ou mesmo nos asanas que já fazemos há anos, surge um desconforto numa parte do corpo e aí entra Tapas. Não como o fervor fanático que nos faz forçar a postura, machucando-nos. Mas como a autodisciplina que nos faz dominar o ego teimoso, que insiste em fazer o que sempre fez. Talvez outra parte do corpo precise abrir, talvez algo tenha mudado, mas trazendo a nossa atenção e rompendo o padrão, podemos passar esse limite que surgiu e talvez até aprofundar a postura.
Tapas é tão importante que é a primeira palavra do segundo capítulo dos Yoga Sutras. Neste primeiro sutra, Patanjali diz que Tapas, Svadhyaya e Ishvara Pranidhana (os seguintes Niyamas) constituem Kriya Yoga, o Yoga da ação. Ou seja, estes três Niyamas são ações práticas de auto-purificação, auto-observação e auto-conhecimento.
Svadhyaya
É o estudo, que pode ser de nós mesmos ou das sagradas escrituras. O auto-estudo é imprescindível: conhecer como está o corpo, o que desponta certas emoções, o que nos faz reagir sem pensar, que obstáculos nos colocamos a nós mesmos impedindo-nos de avançar, entre outros tantos mecanismos. Somente compreendendo como funciona nosso corpo e mente, podemos ultrapassar a identificação com estes e enxergar nosso verdadeiro Ser.
O estudo das escrituras e livros como a Baghavad Gita ou o Yoga Sutras também é fundamental. Eles estão repletos de sabedoria milenar e universal, que podemos aplicar na nossa vida. Mas como dizia Pattabhi Jois: “99% Prática 1% Teoria”. Podemos ler cinquenta livros sobre Samadhi, se desconsiderarmos todos os outros Angas, de nada servirá. Trata-se de praticar o que se aprende e não reduzir o estudo das escrituras a um debate filosófico.

Ishvara Pranidhana
Entrega a Ishvara é como uma chave mestra que abre as portas de todos os outros aspetos do Yoga. De fato, no primeiro capítulo, no sutra 23, Patanjali diz que Samadhi pode ser alcançado por Ishvara Pranidhana. No sutra seguinte, descreve Ishvara como uma alma especial, intocada por aflições, ações e seus frutos. É a Consciência Absoluta, livre do Karma e seus resultados.  A palavra que melhor traduz para português é Deus, porém, na sociedade ocidental, a maior parte de nós está condicionada escutá-la e pensar em um ser superior que age sobre o mundo, separado dele. A ideia de Ishvara é um pouco mais abrangente: é como uma alma que rege o Universo, mas que ao mesmo tempo o compõe. É a inteligência criadora e também a própria matéria. Ou seja, somos todos parte dessa Consciência e por isso Ishvara Pranidhana é rendermo-nos a nossa natureza essencial. 
Ishvara Pranidhana é também agir sem se apegar aos resultados, admitir que não estamos no controle. Temos poder de decisão, mas existe todo um Universo que recebe e conforma o nosso caminho, mesmo que ás vezes seja de maneiras que não entendemos completamente. Isso não significa ficar na passividade, não agir e esperar que Ishvara faça tudo por nós. Uma antiga história sufi conta sobre um mestre e um discípulo que viajavam pelo deserto. Á noite, o discípulo ficou responsável por amarrar os camelos, mas não o fez, simplesmente orou, pedindo a Deus que os guardasse. De manhã os camelos tinham desaparecido. O mestre perguntou: “O que aconteceu? Porque não prendeu os camelos?” e o discípulo respondeu “Mas eu pedi a Deus que os guardasse!” O mestre retrucou “Confia em Deus, mas amarra os camelos primeiro”. Assim é na vida, precisamos primeiro fazer nossa parte, fluindo com as regras do Dharma, para depois podermos entregar a Ishvara.
Pensemos na prática de Yoga como um jardim. Com Saucha limpamos a terra, com Santosha agradecemos a chuva, o sol e o vento, com Tapas queimamos as sementes das ervas daninhas que insistem em germinar, com Svadhyaya aprendemos mais sobre como criar um solo fértil e como plantar de acordo com as estações. No final, entregamos a Ishvara, confiando que qualquer que seja o resultado está de acordo com as leis do Universo. Agora, os frutos serão aqueles que plantamos. De sementes de abóbora não nascerão melancias, da mesma forma se plantamos falsidade não teremos verdade.  Ishvara Pranidhana, fazemos nossa parte e o resto virá.  De nada adianta ficar em baixo da árvore dias a fio, implorando ao fruto verde para cair. Se esperarmos pelo momento certo, provaremos um fruto suculento e saboroso, sem frustrações nem apego.  E ás vezes, algumas sementes não germinarão e saberemos que também isso é certo. Ishvara Pranidhana é estar pleno porque o Universo é pleno, é a compreensão final de que tudo o que precisamos está dentro de nós e por isso é o caminho mais direto para Samadhi.
Yamas e Niyamas são os pilares de uma prática de Yoga sólida e coerente. Estabelecendo-os e aplicando-os na nossa vida, estendemos a prática para todo o nosso dia, muito para além das duas horas no tapetinho. E assim, Yoga deixa de ser algo que fazemos e passa a ser algo que faz parte de nós.

Texto: Olga Rodrigues
Foto: Taeko