Praticar é preciso.. Uma jornada de auto conhecimento.
Talvez ninguém saiba muito bem como começou essa jornada. Um comentário entusiasmado de um amigo, uma fotografia bonita de um asana, um conselho de um médico, uma dor insistente. Mas são tantas as informações que nos chegam cada dia, porque demos atenção logo a essas? Que força foi essa que nos chamou? A verdade é que esses foram apenas pretextos para iniciarmos a maior viagem que alguma vez poderíamos ter imaginado e que já esperava por nós: a única que se faz de fora para dentro, que não requer mais do que força de vontade e o compromisso de um sadhana. Essa prática que começou com algumas horas de asanas e acabou se estendendo pelo resto do dia, abrangendo todas as áreas da nossa vida. Vamos descobrindo ilhas paradisíacas dentro de nós mesmos, abrindo canais que nos levam ao outro lado do nosso mundo interior, cruzando fronteiras, que depois de passadas, vemos que eram imaginárias.
Por isso, como dizia Fernando Pessoa, “Navegar é preciso, viver não é preciso”. Se esperamos o tempo certo e o mar calmo para sair em nossa viagem, pode ser que fiquemos mais tempo em terra, do que nos aventurando pelos confins do nosso ser. Não podemos querer praticar somente quando temos disposição para isso, nossa mente está clara ou nosso corpo está leve e solto. Os maiores avanços a nível de caminho evolutivo se dão muitas vezes quando encontramos desafios. Nesses momentos de maior vulnerabilidade, precisamos trazer mais consciência e amor, seja para uma lesão, seja para uma emoção negativa que toma conta de nós ou seja pelo que for. Talvez essas condições inóspitas sejam lições necessárias. O mar é o que é e seria muita prepotência querermos ter controle sobre suas condições, nos frustrando quando se avizinha tempo ruim ou quando o vento sopra em direção contrária à que seria ideal para nós. No meio das dificuldades, não nos resta mais do que aprendermos a ser humildes, praticando a aceitação do que é como é e não como nossa visão limitada gostaria que fosse. Por isso o método é preciso, no sentido em que é essa precisão que nos dá a estrutura para irmos mais longe, mesmo quando o vento não sopra a favor. A sabedoria inerente da sequência de asanas de cada série, a disciplina de praticar todos os dias, o foco constante em algo tão simples e básico como a respiração: essas são as bases que nos permitem ir passo a passo, dia por dia, nos observando, transformando e aceitando.
Por isso, são tão importantes Bandhas, Dhristi e a respiração Ujjayi, nossos instrumentos de navegação, nossas bussolas e quadrantes, que devemos ter sempre á mão e que nos permitem ir pelo desconhecido com segurança. Nosso corpo é nossa embarcação, que precisa estar limpa e forte para navegarmos. A mente nosso leme, que nos encaminha nas diferentes direções. Livros como os Yoga Sutras são mapas, dando pistas por onde devemos ir. E mestres como Guruji, nossas estrelas polares, brilhando sempre no céu e nos guiando, mesmo quando perdemos o norte na noite escura da alma.
Mas há algo que ás vezes parecemos nos esquecer e que é uma das coisas mais importantes. Para termos um rumo, temos que saber para onde ir. Podemos contemplar o oceano, aproveitar cada ilha, mas precisamos saber qual nosso destino. Se dirigimos o barco para leste como podemos querer ir para norte? Se dirigimos nossas ações pensando no conforto dos padrões habituais ou em satisfazer o ego, como podemos chegar um dia a evoluir enquanto seres humanos? Se praticamos pensando no asana perfeito, forçando nosso corpo a chegar lá, seja como for, como podemos criar abertura e relaxamento? Se na nossa prática, mente e Prana são direcionados para os problemas do dia-a-dia, como podemos chegar a ter paz? É totalmente contraditório e seria absurdo, se não fosse tão comum. Devemos ter clara nossa intenção, não esquecer dela, nem nas piores tormentas, nem na ilha mais paradisíaca. Porque para onde nos direcionamos, é para lá que vamos, mesmo que seja com a velocidade mais lenta do que desejaríamos. Sankalpa é o nome em sânscrito para essa intenção e precisamos defini-lo, tê-lo em mente, para podermos saber qual é nossa prioridade. Porque em qualquer ação que fazemos, até mesmo quando escolhemos não agir, existe uma intenção. Talvez pareça fútil, como ficar em forma, mas pode ter um sentido de base mais profundo quando nos questionamos sobre ela. Ficar em forma pode significar ter mais disposição, ser capaz de fazer mais coisas, se valorizar mais, estar em paz consigo mesmo. O próprio questionamento de nosso sankalpa já é uma prática em si mesmo, porque nos permite nos conhecermos melhor. Então, podemos pegar nesse sentido mais profundo e usá-lo como objetivo, deixando-o claro, para não nos perdermos pelo caminho.
Mas mesmo o navegador mais experiente, com o melhor dos barcos, os melhores instrumentos e destino certo, precisa lidar com os ventos que o desviam do caminho. Que ventos são esses? Poderíamos dizer que os klesas, as cinco aflições ou causas de sofrimento apontadas por Patanjali nos Yoga Sutras: Avidya (ignorância), Ragas (apego ao prazer), Dvesas (aversão ao sofrimento) e Abhinivesa (medo da morte).
É dito que Avidya é a raiz de todo o sofrimento. Mas essa não é uma ignorância por falta de conhecimento intelectual ou racional. O ser mais simples pode ter Vidya, o conhecimento verdadeiro da sua essência mais profunda, assim como o acadêmico com mais graduações acumuladas pode viver na ignorância, Avidya, de quem é realmente. Porque esse é um conhecimento que não vem só do estudo, trabalho e lógica, mas também da capacidade de se entregar, sentir e amar. Ao longo da vida, tentamos construir nossa identidade e nesse processo vamos edificando uma estrutura ilusória de identidade que nos separa do Todo. Esse é o segundo klesa, Asmita, ou individualidade, e não admira que nos leve na direção contrária do nosso ser mais profundo. Da confusão de Avidya, surge essa tentativa de definição, que inevitavelmente causa uma separação do resto, dando espaço a emoções e ações egoísticas. Se eu vejo o outro como um outro eu, porque vou querer passar por cima da vontade dele, mentir, roubar, manipular? Porque as aspirações e bem estar do outro são menos importantes que as minhas? Avidya, essa ignorância da própria natureza, é desoladora. Responder á pergunta “quem sou Eu?” parece uma tarefa interminável e infinitamente trabalhosa, talvez até impossível. Não por acaso, essa parece ser a busca de base de artistas, filósofos, religiosos. E se a resposta for “eu não sou nada”? É mais fácil se apegar a algo, seja o que for, criar uma ideia de superioridade. Mas o que acontece quando estamos em cima e os outros em baixo é que o pico é solitário. Ninguém mais chegou lá, porque é um alto que nós mesmos criamos, a partir de uma visão que é só nossa. Como pode então esse vento da individualidade e separação nos levar ao centro de nós mesmos, onde reside a Unidade?
De Avidya surgem ainda os dois ventos de Ragas e Dvesas, apegos e aversões. Pois é, nós até sabemos que praticar é preciso. Mas o que fazer com esse apego a zona de conforto, aos prazeres? O que fazer com a aversão à disciplina, ao desconforto causado por certas posturas, a enfrentarmos nossos medos e bloqueios no tapetinho? Não são esses os ventos que nos levam facilmente para outro lugar qualquer que não seja o sadhana diário? Tal como a individualidade, nossos gostos e aversões fazem parte de nós e nada têm de errado, se não nos desviarem do caminho. O problema é quando se tornam tão fortes que perdemos o controle, nos embolamos nas suas ondas tumultuadas e agimos automaticamente, ás vezes até desconsiderando nossos valores. Damos por nós indo exatamente na direção contrária daquilo que tínhamos estipulado como nosso destino, quando tudo estava calmo e tínhamos alguma paz para decidir. Aí, Asmita, Ragas e Dvesas causam sofrimento.
Dando um exemplo simples, nos propomos a praticar todos os dias. Vem o vento do apego à preguiça, da aversão ao esforço. Logo, nossa mente nos convence que bem melhor que ir praticar e ter que lidar com todos aqueles bloqueios e padrões, é ficar em casa, descansando. E cedemos. Ou estamos numa postura difícil, sabemos que a respiração deve ser nossa prioridade. Mas surge a tensão, o apego ao perfeccionismo, o ego reclamando a supremacia de Asmita. E entramos em modo automático. Contraímos, tensionamos, nos fechamos e bloqueamos o fluxo do Prana. Como pode mudar assim de repente algo que tínhamos tão claro? Para lidarmos com essas duas faces da mesma moeda, precisamos que nosso sadhana seja composto por duas forças, também complementares: Abhyasa e Vairagya. Prática e desapego. É aprender a avançar mas também a realmente deixar o que fica para trás. A agir mas também a permitir. Transformar mas também aceitar.É trabalhar com afinco, incorporando novas formas, novos hábitos á nossa vida, mas também abandonar aquilo que não nos serve mais. Se simplesmente vamos adicionando novidades, logo teremos uma bagagem maior do que podemos carregar. É se abrir ao novo, mas limpando primeiro o espaço para o receber. É saber que estamos fazendo tudo o que poderíamos para chegar onde queremos, sendo coerentes com nosso sankalpa, mas desapegando do resultado, confiando que as leis do Universo são mais certas do que a nossa própria razão. E relaxar na noção de que, em ultima instância, realmente não temos controle sobre nada. Por que agir então, se não esperamos o resultado? Porque essa ação, mais que tudo, é guiada pelo Dharma e não pelo sucesso individual. Talvez seja nosso Dharma enquanto seres humanos ir de encontro à liberação. Se não fosse nosso ego demandando tanta atenção, se não fosse a mente criando tantas distrações, se pudéssemos apenas relaxar… Não iríamos naturalmente de encontro ao Todo , tal como o rio corre para o mar?
O que nos leva ao quinto klesa, Abhinivesa, o medo da morte. O que é a morte? O fim da nossa individualidade e provavelmente, a representação máxima do desconhecido e do incontrolável. É o pulo final no abismo, é quanto mais nos agarramos à rocha que um dia inevitavelmente desabará, mais sofrimento criamos. Talvez a relutância em nos entregarmos ao Savasana seja um resquício desse medo, porque nessa aparente não-ação, a individualidade se dissolve. Quantas coisas, quantos avanços o medo bloqueia? O que temos tanto medo de perder? Porque nos precisamos agarrar desesperadamente ao conhecido, ao material? Por isso também o poeta diz que viver não é preciso. Porque no medo de perder a individualidade, de nos desfazermos de gostos e aversões que achávamos que nos definiam, de sairmos da falsa segurança de que somos esse corpo e essa mente, perdemos nosso rumo e às vezes paramos até nossa viagem, estagnando no pântano do medo. Quando conseguimos olhar de frente para esse medo, podemos por fim lidar com ele. Talvez continue lá, mas não nos controlará mais.
Então, não se trata de traçar viagens loucas, de desbravar para conquistar terreno ou se frustrar por não o conseguir. Definimos nosso destino, preparamos nossa embarcação, lemos os mapas, nos apropriamos com os melhores instrumentos, obervamos os ventos que nos podem desviar. Assim preparados, soltamos por fim as âncoras pesadas que nos prendem ao passado e empreendemos com amor e consciência aquela que é a viagem mais importante de nossas vidas. Navegar é preciso.
Texto de Olga Rodrigues
Fotos de Kike Krueger no Intensivo com Kathy Cooper, Setembro, 2014