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Ritmo & Tradição

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Ashtanga Yoga: Ritmo e Tradição
Quando se fala da tradição do Ashtanga, algumas perguntas inevitáveis surgem sempre. Provavelmente, as mesmas perguntas já passaram pela mente de todos os praticantes: “Não é cansativo fazer sempre a mesma coisa?”, “Por que seis dias por semana?” “Por que parar nos dias de Lua?”. A um primeiro olhar, podem até parecer dogmas, regras rígidas, mas têm um sentido. São linhas gerais que quem as cumpre sente como adequadas, mas requerem perseverança e devoção.
Repetição 
A repetição da mesma série todos os dias tem vários propósitos e resultados, mas poderia resumir-se a uma palavra: ritmo. A Natureza funciona em ciclos, que se repetem ritmicamente. Respiramos sempre na mesma sequência, com os mesmos músculos e órgãos, mas isso não quer dizer que não possamos explorar essa respiração, conseguindo diversos resultados como ficar mais ativos ou mais calmos. Da mesma forma, os asanas (posturas) repetidos por tantas e tantas vezes nos dão a oportunidade de nos explorarmos, de conhecermos melhor nosso corpo e mente. Se a cada prática mudamos a série, conforme nossa preferência ou habilidade, o foco fica nessa mudança e em aprender os asanas novos. Quando o corpo memoriza a série, podemos trabalhar com os aspetos mais sutis da prática.
O ritmo nos libera dos vrttis, das flutuações da mente. Sendo sempre a mesma série, não precisamos pensar o que vamos fazer hoje nem nos deixamos levar pelo ego na hora de elaborar uma sequência, seja nos limitando, seja forçando a mais do que aquilo para que estamos preparados. Mais importante, a repetição dá-nos autonomia. Em qualquer lugar do mundo, podemos entrar num Shala de Ashtanga Yoga e simplesmente praticar, ou mesmo fazê-lo sozinhos, quando não temos acesso a um Shala. O Ashtanga é para todos os tipos de pessoas, não exige que estas se dediquem exclusivamente ao Yoga e talvez por isso seja tão importante essa independência. Isso não quer dizer que não seja necessário um professor, que é fundamental, mas este é apenas um facilitador, o caminho é de cada um e tem algo de profundamente liberador nisso.
Mas a verdade é que a prática não é sempre a mesma. Para além da progressão nas séries, que vai transformando constantemente nossa prática, cada dia somos pessoas diferentes, com corpos diferentes. Uma das grandes chaves do Yoga é a auto-observação. Como posso observar algo se constantemente a forma se altera? Com a mesma sequência de asanas, conseguimos observar como realmente estamos, que efeito aquela comida teve no nosso corpo, como aquela discussão afetou nossas emoções ou como a mente nos controla segundo diferentes influências.  Ao longo do tempo, podemos observar nossa evolução, como conseguimos respirar onde antes ficávamos ofegantes, como relaxamos onde antes tínhamos medo. Não para agradar nosso ego, mas para recordarmos sempre que tudo passa e que temos em nós as respostas para ultrapassar os desafios, sejam eles um asana difícil ou uma mudança grande na nossa vida. A repetição se torna assim uma estratégia para o auto conhecimento.
Talvez o mais importante seja que o ritmo permite finalmente nos entregarmos ao momento presente e aceitar as coisas tal como elas são. Dias bons ou ruins, com o corpo duro ou flexível, cansados ou cheios de energia, a mente focada ou alterada, a série é a mesma, e torna-se um porto de abrigo, onde podemos observar esses opostos e aceitar a dualidade natural da vida. Só assim a podemos transcender e alcançar a unidade, que é afinal, a essência do Yoga.  Como num japa, em que cantamos repetidamente o mesmo mantra, também nessa repetição rítmica podemos finalmente relaxar na compreensão de que o silêncio, o absoluto, o Todo, é a única coisa que permanece. 
Rotina
Tradicionalmente se pratica seis vezes por semana, com descanso ao Sábado, aulas estilo Mysore toda a semana e guiada uma ou duas vezes por semana. Mais uma vez, o ritmo é a chave.
Esta rotina faz com que a prática seja inserida no ritmo diário, incorporada à nossa vida de tal forma que seja tão natural praticar quanto tomar banho. De fato, a prática funciona como uma limpeza de padrões, emoções e bloqueios, que não nos permitem enxergar o nosso verdadeiro Eu e que poluem a nossa vida. A prática restabelece o equilíbrio dos nossos corpos, por isso a Primeira Série é chamada Yoga Chikitsa (Yoga Terapia). A nível energético, também nossos nadis (canais energéticos) são purificados. Pensando nestes termos, voltamos à analogia do banho: É melhor tomar um banho prolongado uma vez por semana ou tomar um banho curto todos os dias? A resposta é obvia e por isso é fácil entender que se não se tem tempo, é preferível fazer menos cada dia, mas mais vezes por semana. Se praticamos só quando nos sentimos bem ou dispostos a isso, nunca chegaremos ao ponto em que praticar é tão natural que não precisamos mais travar batalhas internas de “vou /não vou”. A energia dissipada na indecisão é um desperdício, se pensarmos no quanto nos beneficiamos com a prática. E o que é pior, pelo caminho, vamos criando o samskara (impressão) da indecisão e da culpa, enquanto poderíamos estar construindo o samskara da prática como parte indispensável do nosso dia.
Muitas vezes também se escuta a frase “Mas eu não gosto de rotina, nem de repetição”. Realmente, a mente detesta não poder escolher. Como um macaco bêbado, ela pula de galho em galho, fazendo mil manobras de diversão, para simplesmente não parar. Retirados os vrttis de “que asana vou fazer?” ou “será que pratico hoje?”, a mente tem menos poder para nos distrair, somos obrigados a olhar para o que acontece dentro de nós, a rendermo-nos ao silêncio interior, em que a mente tem que ficar quieta. A prática estilo Mysore reduz as distrações de ter que escutar ou seguir um professor, dando mais espaço para escutarmos nosso diálogo interno e poder finalmente reduzi-lo.
No sutra 1.12, Patanjali diz que os vrttis são cessados por abhyasa (prática) e vairagya (desapego).  No sutra 1.14, descreve abhyasa como a prática constante, continuada por um período longo sem interrupções, feita com devoção. As pessoas chegam ao Ashtanga por diferentes razões e diversas motivações, todas válidas. Devemos ser honestos com nós mesmos e nossas prioridades. Talvez para quem queira somente um corpo em forma não seja tão importante esse ritmo de seis vezes por semana e a verdade é que está tudo bem com isso. Mas para quem busca “chitta vrtti nirodaha”, uma mente sem flutuações, é crucial seguir o conceito de abhyasa contido nos Yoga Sutras. O curioso é que embora ao início tenhamos de dedicar muita atenção e até fazer algum esforço para conquistarmos essa continuidade, se o fazemos de coração aberto, com plena confiança e devoção, se torna cada vez mais fácil, até que um dia se estabelece e instala. 
Vairagya, o desapego, está também presente nessa rotina de seis vezes por semana. Ao praticar a auto-observação todos os dias, se torna mais claro o que não nos faz bem, que hábitos e relações precisamos deixar ou transformar. Não por acaso, muitos praticantes deixam de comer carne ou de fumar ao longo do tempo, sem que sejam doutrinados para tal. Simplesmente, dentro de si, começam a sentir que é o certo fazer para viverem alinhados com o seu ser. 
Pausas
A tradição diz que não devemos praticar em dias de Lua Cheia ou Lua Nova nem nos três primeiros dias de menstruação. 
Os dias de Lua nos afetam muito, energeticamente, o que não é de admirar, se considerarmos a influência da Lua sobre as marés e a nossa constituição de 70% de água.  Quem não sentiu já a energia explosiva de uma noite de Lua cheia ou a tendência à introspeção na Lua Nova?  A Lua está também muito relacionada com a mente e como sabemos, quando a mente está perturbada temos mais probabilidade de nos magoarmos.  
As mulheres devem ainda se abster de praticar nos três primeiros dias de menstruação. Guruji recomendava ficar todos os dias sem praticar, até porque na Índia as mulheres não trabalham nem cozinham nesses dias. Isso pode nos chocar, já que parece uma desqualificação de uma cultura machista do nosso papel enquanto mulheres. Mas isso é se encararmos o período menstrual como uma inconveniência. No Ayurveda, assim como em muitas culturas indígenas ao redor do mundo, é visto como um momento de desintoxicação, sendo mais um privilégio do que um problema. Por isso, é importante honrar o ciclo menstrual, praticando ahimsa (não violência) também com nós mesmas, ao não desperdiçar energia que seria utilizada para esta função natural e ao não aquecer demasiado o corpo, que nesta época já tem um calor interno aumentado.
Quando praticamos, utilizando os Bandhas e focando na respiração, equilibramos a ação Apana Vayu (descendente) com Prana Vayu (ascendente). No período menstrual, Apana Vayu está e precisa estar mais ativo, especialmente nos três primeiros dias, por isso não é benéfico contradizer esse movimento descendente, que favorece a eliminação. Também por essa razão, nos restantes dias, não devemos realizar posturas invertidas. 
Estas pausas são um momento de praticar vairagya, o desapego. Mais uma vez, temos de nos render aos ritmos naturais da Lua e do nosso próprio corpo, aprendendo a descansar mesmo que seja muitas vezes contra nossa vontade. São pequenos exercícios mensais de desapego, que nos ensinam a deixar ir cada vez mais facilmente.
Precisamos reconhecer a sorte de ter um sistema que nos dá a oportunidade de nos conhecermos e transformarmos, com a segurança do conhecimento passado por gerações de sábios. Mas questionar está na natureza humana. A sugestão que fica é: ponha tudo isto á prova, se comprometa a seguir estas premissas por um longo tempo, deixe-se levar pelo ritmo, observe-se e escolha por si.  Talvez chegue á conclusão que nada disto faz sentido ou talvez chegue o dia em que as raízes de abhyasa e vairagya se transformem em asas. 
Texto: Olga Rodrigues
Fotos: Taeko