Esse aparente paradoxo se poderia explicar com uma palavra: autoconhecimento. Afinal, praticamos Yoga porque queremos chegar mais perto de quem realmente somos, praticando a auto-observação como forma de separarmos o trigo do joio, aquilo que nos pertence daquilo que nos foi imposto, seja pelos outros seja por nós mesmos. Trazemos á luz àquilo que antes estava escondido, para com a espada afiada do discernimento cortar o que não nos serve mais. No Yoga, não há espaço para auto ilusões ou negação. Nosso ego e sua sede insaciável de auto satisfação podem até fazer passar por positivo algo que nosso intelecto sabe que não nos faz bem, seja uma cervejinha, uma comida pouco saudável, um filme violento ou mesmo uma companhia tóxica. Mas no dia seguinte, quando nos enfrentamos no tapetinho, o corpo dói, a mente foge e não há mais como negar o óbvio. E se estamos ali, se conscientemente escolhemos dedicar um momento de nosso dia corrido para nos observarmos, é porque existe uma semente dentro de nós que nos faz querer evoluir. É essa semente que faz com que aos poucos, mudanças aconteçam na nossa vida. Idealmente, nossa tendência para uma expansão da nossa espiritualidade inata acaba por ganhar e talvez cheguemos num ponto que nem lembramos mais desses hábitos que um dia achamos que nunca largaríamos.
Por isso se diz que o Yoga purifica. Não é uma limpeza no sentido higienista, de deixar tudo esterilizado, para que nada possa crescer. Mas de tirar o que é impuro, o que é rajásico ou tamásico, para que exatamente nossas tendências sátvicas possam crescer com mais força e até se multiplicar. Porque há uma diferença entre vrttis positivos e negativos, como os kleshas (ignorância de quem somos, identidade, apegos, aversões e medo da morte), assim como de emoções negativas ou positivas. Essa diferença é a direção para a qual nos levam. O que estamos cultivando hoje para colher amanhã?
Entretanto, o difícil com as emoções é muitas vezes o quanto elas nos tocam fundo, o quanto rejeitamos umas e nos apegamos a outras. Começamos a praticar e precisamos lidar com algumas partes de nós mesmos que não queríamos ver. Mesmo que ao inicio Asanas e Pranayamas nos pareçam algo extremamente físico ou técnico, o fato é que diferentes aspetos psico-energéticos e também emocionais vão sendo trabalhados.
Porque a verdade é que quase todos nós chegamos a nossa primeira aula de Yoga trazendo no corpo toda a carga emocional de anos, já que raramente temos oportunidade de liberá-la. Pelo contrário, somos muitas vezes ensinados ao longo da vida a tapar o que estamos sentindo, porque não é apropriado expressar naquele momento, ou porque nós mesmos queremos evitar aquela emoção dolorosa. Mesmo quando crianças, nossas manifestações de tristeza e até de alegria, ira ou mágoa são muitas vezes reprimidas. Aos poucos, vamos aprendendo a esconder nossos sentimentos, cada um criando suas estratégias desesperadas, como racionalizar demais as situações, negar os problemas ou procurar estímulos que de alguma forma tapem aquilo que não queremos sentir. Em qualquer comportamento compulsivo, seja beber, comer, comprar, trabalhar ou outro, a tentativa é sempre a de inundar a mente com outras sensações. Custe o que custar, não podemos parar nunca, pois isso nos faria olhar para o que dói, para o que não é bonito, para o que o nosso ego não gosta de chamar de seu.
E o que acontece com todas essas emoções que negamos, tapamos ou racionalizamos? Elas não vão embora porque simplesmente não há mais espaço para elas. Pelo contrário, tentam se expressar de outra forma. Acumulam-se em algum lugar e bloqueiam a passagem de energia até que nos demos conta de que algo está errado. Por isso vamos fechando o peito e rodando os ombros para a frente como quem defende o coração dos ataques externos. Por isso vamos endurecendo nosso quadril, não permitindo dar passos em frente. Ou por isso nosso joelho dói quando temos que nos ajoelhar e reconhecer nossa pequenez perante o grande esquema da vida. Por isso também nossas costas acumulam tanta tensão, numa tentativa de colocar longe da vista, bem lá para trás, aquilo com que não queremos lidar no momento. E esse são apenas pequenos exemplos.
O que acontece quando começamos a praticar Yoga? Levamos calor, energia, movimento e Prana para lugares de nosso corpo que estavam bloqueados ou adormecidos. Como temos essa semente de expansão espiritual dentro de nós, ou não estaríamos ali, naturalmente vamos percebendo que algo não flui. Pode ser até que ao inicio resistamos, que nossa mente perceba isso como dor (não invalidando as dores da prática, as quais sempre devemos dar atenção), que esse processo dure mais tempo do que gostaríamos e que ao longo dele diferentes emoções surjam, como mágoa ou raiva. Pode ser até que essas sejam tão fortes que nosso instinto é correr e não voltar mais. Mas devemos lembrar que a prática deve ser sempre sátvica, ou seja, nos deixar com a mente mais clara e tranquila do que antes. Se terminamos nos sentindo irritados e impacientes ou pesados e apáticos, precisamos verificar o que está acontecendo, apenas através da observação, já nos permitimos dissolver muito do que está internamente acontecendo. Porque aonde vai a mente vai o Prana. Então aquele bloqueio se enche de energia vital e começa a se desfazer.
Se com os Asanas temos a oportunidade de dissolver nossa carapaça emocional criada por anos, com os Yamas e Niyamas podemos usar essa abertura criada para interagir com nós mesmos e com o mundo de uma forma diferente, que só gerará mais luz, honestidade e generosidade. Removendo esses bloqueios, fica também muito mais fácil começar a queimar os samskaras, essas impressões acumuladas que nos levam a agir de forma condicionada. É como se chegássemos numa interseção e tivéssemos uma trilha aberta, que já fizemos várias vezes e outra menos aberta, pela qual raramente fomos. Naturalmente, muitas vezes sem pensar, enveredamos por aquela que conhecemos melhor, mesmo que nos tenha levado a onde não queríamos. Essa trilha aparentemente mais confortável é o samskara. Seu condicionamento pode ser muito forte e difícil de quebrar. Ás vezes podemos até sentir que com o Yoga estamos indo contra a corrente ou o que é normal. Mas precisamos pensar: Onde queremos chegar? Na liberação? Ser livre não é só fazer o que se quer, não é conseguir sempre ver suas expectativas satisfeitas, mas sim estar em paz com o que quer que aconteça. É estar perante as mil interseções da vida e saber que se está escolhendo a trilha que está mais adequada com o nosso Dharma, com o nosso destino, guiados por Buddhi, e não por nossos Ragas e Dvesas, apegos e aversões, saber que estamos agindo e não reagindo. E ainda assim, seguir nesse caminho com paz no coração, feliz com seu destino seja ele o que esperámos ou não.
Mas isso, realmente não é nada fácil. Até porque além de nossos próprios condicionamentos, temos que lidar com os condicionantes externos. Damos por nós pensando que seria muito menos trabalhoso seguir Yamas e Niyamas, sair dos padrões, se vivêssemos isolados, meditando no alto da montanha. Se não tivéssemos contas para pagar, tarefas para fazer, satisfações a dar. Como viver num mundo que muitas vezes não é nada justo, em que nos relacionamos com pessoas diferentes todo o dia, que trazem seus próprios samskaras sobre os quais não temos nenhuma responsabilidade?
Imagens de Karim Rojas no Intensivo de Ashtanga Yoga com Guy Donahaye em Floripa.